Esquerda? Direita? Já não há. Ideia romântica, essa, de que os que tinham iriam perder e os despojados iriam ganhar. Com pequenas voltas e grandes reviravoltas, migalhas aqui, dez réis de subsídio além, os que têm pouco morrerão de fome mais lentamente, vão ganhando algum a argamassar os muros dos condomínios onde os outros digerem e repousam.
Isto explica ele do alto do seu metro e oitenta, bucho condizente, cara de revolucionário façanhudo.
Veio do mais pobrezinho, aos oito entrou para as obras, foi ganhando, tem carrinha, esta tarde de domingo traça no café a situação do país:
- Não sou como os políticos, que só querem para eles. Isto tem de mudar!
Os outros, toldados da cerveja, aguardam o anúncio. Sente-se o ambiente de um soviete em preparo. No meu canto, distraio-me a imaginar punhos erguidos, foices e martelos, as bandeiras vermelhas, os gritos de "Abaixo o Capital! Viva a Revolução!"
Entretido nisso não oiço o que vai mudar, mas noto o silêncio repentino. Entra o senhor Mateus. Empreiteiro, homem de muita "massa". Entra o filho, que lhe pede a chave do BMW.
O senhor Mateus oferece uma rodada. Falamos do calor que está, do desastre que vai ser com a falta de água, mas um lembra que a televisão deu chuva. Zombamos, descrentes do profeta, que diz agora, a voz empastada :
- O 25 de Abril mudou muita coisa!
Uns encolhem os ombros, outros riem sem razão, o senhor Mateus anuncia que vai precisar de gente.