terça-feira, janeiro 5

A minha horta


Nisto de escrita há quem tenha uma quinta, por vezes um latifúndio, mas a maioria, e aí me incluo, tem uma horta. Em geral, quando o digo, as pessoas não gostam. Uns acham pedantice, a outros parece vaidade disfarçada de modéstia, este e aquele aborrecem-se porque consideram que a escrita, aos seus olhos coisa elevada, nobre, não se deve banalizar em comparações que lhe embaciam o brilho.(*)

Mas essa é a minha opinião e por ela me fico. A escrita é a minha horta. Com respeito pelo que faço e como o faço, semeio, lavro, rego, podo, corto uns galhos, queimo umas folhas. Sigo ainda o exemplo do hortelão quando ofereço o fruto ou o ponho à venda, o que só faço quando o julgo maduro.

Estive a pensar estas coisas durante a insónia da noite passada, e num acesso de febre comecei a fantasiar um mail que mandaria ao senhor Eça de Queirós se soubesse onde encontrá-lo. A pedir-lhe conselho e opinião. É que ando azedo. Bem sei que no quintal de alguns nem a couve penca cresce, e que numa quinta ou latifúndio tem de ser grande a lixeira. Mas ó senhoras e senhores!

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(*) Fazer comparações é por vezes bico de obra. Coisa de ano e meio depois do 25 de Abril , desapontado com o facto de que as grandes obras literárias, "açaimadas pela censura" e anunciadas para surgir com a liberdade, recusavam deixar as gavetas, escrevi um texto onde se lia esta passagem:

"Em vários sentidos a literatura portuguesa é decepcionante: na temática, no estilo, nas reacções de muitos dos seus escritores perante a realidade do país. A nenhum dos que viveram ou morreram durante a ditadura, e a nenhum dos vivos, se pode aplicar a frase de Soljenitsin: 'Um grande escritor é um segundo governo'.

Os escritores portugueses contemporâneos todos juntos serão, quando muito, uma junta de freguesia".

De vendido a inimigo do proletariado, fascista, traidor, canalha, bufo, filha da puta, creio que despejaram sobre mim o balde inteiro.