terça-feira, novembro 3

Aproveite o cancro

Anos atrás, na Holanda, um sujeito da publicidade deu-se conta que, aplicando-lhe as regras do marketing, o facto da sua jovem esposa sofrer dum cancro e ir morrer em breve, resultaria num best-seller. Meu dito meu feito. Enxertou no relato umas especulações filosóficas, contabilizou os adultérios que lhe apeteceu fazer (ou inventou ter feito) enquanto a mulher agonizava, cobriu o todo com o molho conveniente e, de facto, vendeu-se em redor do mundo mais de um milhão desse curioso testemunho, estão a rodar dele um filme, vai haver uma série na televisão. (*)

Agora é um poeta canceroso sobre cujo livro José Mário Silva escreveu no Expresso coisas profundas: "Previsivelmente, o centro geométrico desta sequência de poemas está no quarto – o espaço do confinamento, o «recife» onde o corpo naufragou e espera a sua sorte. Como única companhia, o sujeito poético tem o tempo. Um tempo que se expande e se sobrepõe a tudo («fundo de um poço / sem fundo que aqui invade a matéria»), lento trânsito das horas que altera a própria percepção da realidade."

Não li os poemas, só o artigo, mas hoje tudo me deprime. Além de que me mordo de raiva pelo facto de três anos atrás, quando fui operado a um cancro, não me ter ocorrido que poderia mudar isso em mina de ouro ou arte poética.

Ainda bem que a meio do dia fui aqui de visita e à Ana agradeço o neste momento me sentir menos só.

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(*) Ray Kluun, Love life – de coração aberto. Traduzido do inglês por Manuel Alberto Vieira. Lisboa: Presença, 2009.