Uma das facetas desagradáveis do meu carácter é ser quase totalmente destituído de moderação. Além de me impedir de fazer carreira na política ou fortuna no comércio, isso contribui ainda para que, sob uma aparência pacífica, eu viva em estado de quase permanente zanga, discórdia e insatisfação com as pessoas mais variadas e as instituições mais díspares.
Entre as bêtes noires que nos últimos tempos me têm incomodado, conto as entidades que patrocinam e encorajam a disseminação de "obras de arte" nos espaços públicos, as quais, dentro da legalidade, desenvolvem uma actividade poluidora superior à dos débeis de espírito que com graffiiti nos tentam comunicar as suas simpatias e ódios.
No remanso dos gabinetes os dirigentes desses serviços desdobram por vezes a planta de uma cidade, o mapa de uma província e se topam muro cego ou rua por enfeitar, logo ordenam que se transportem para lá as obras de arte que abarrotam os depósitos ou encomendam as que lhes parecem adequadas.
Além de partilhar com a natureza o horror vacui, o funcionário tem de gastar o orçamento e obedecer às directivas que declaram a obra de arte um produto de consumo. Em compreendo esse zelo. Mas compreender de forma nenhuma significa concordar, e o meu pasmo é grande ao ver que os cidadãos que, impotentes, justamente se enfurecem contra os graffiti, não se opõem às entidades que a torto e a direito poluem a paisagem. Imoderado, reconhecendo a minha imoderação, ocorre-me contudo perguntar se não sou injusto para com os autores dos graffiti, e se é a eles que realmente devo tratar de ignorantes e débeis de espírito.
Porque os gostos diferem, os espaços diferem, e eu próprio reconheço a simplicidade do meu desenvolvimento artístico, longe de mim o querer determinar qual o tipo de arte apropriado para os lugares públicos. Assim, pois, o meu propósito não é preferir os bustos do escultor Janssen aos bonecos do escultor Pietersen, ou a pintura abstracta de X ao realismo mágico terceiro-mundista de Y, mas, porque já se atingiu a saturação, requerer a quem manda que seja posto termo ao derrame desenfreado de obras de arte nas ruas, pracetas, nos parques e no resto. E se tal não for possível – porque alguns artistas vivem do subsídio e muitos funcionários vivem de conceder o subsídio – que se exportem então esses excedentes da produção artística, da mesma maneira que se exportam os excedentes do queijo, oferecendo-os com desconto a regiões longínquas.
Seria fácil meter muita dessa arte, ou pseudo-arte, a ridículo, comentar com crueldade os títulos pernósticos com que os artistas baptizam as suas criações, descobrir argumentos válidos para no escuro da noite – por causa da Polícia – ir escavacar os mamarrachos que insultam o sentido estético mais elementar ou visivelmente não passam de uma burla.
Acontece uma vez por outra que um crítico enfurecido, um artista invejoso e frustrado, se encarrega dessa forma de saneamento. Mas como ninguém espera de mim uma crítica artística, nem a minha preguiça consente que vá, de marreta em punho, destruir o que quer que seja, resta-me apenas um ponto que gostaria de tratar e o qual, que eu saiba, não mereceu ainda a atenção dos especialistas: refiro-me à ameaça que, em lugares públicos, a presença de certas obras de arte pode representar para a segurança de automobilistas e peões.
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Nota: este texto tem ainda umas treze ou catorze páginas, mas dedos emperrados e falta de tempo levam-me a pará-lo aqui. Há disponível uma versão PDF, que por razões de incompetência informática não consigo colocar no blogue.