sexta-feira, março 27

Cadeias

Lê-se nas estatíscas municipais: pelas ruas do centro de Amsterdam passam diariamente umas trinta e oito mil pessoas. Significa isso que, andando eu por ali como de costume hora e pico, me cruzo com mais de um milhar de desconhecidos. Corpos de todos os tamanhos e feitios, rostos dos tipos mais variados, os comportamentos inesperados da multidão anónima.

Amanhã vou-me de viagem e segunda-feira chego à aldeia. Lá, alma mais alma menos, entre válidos, inválidos, acamados e trôpegos, somos à volta de oitenta e cinco. Desses, se o dia é soalheiro, cruzo-me no melhor com seis ou sete. Rostos que conheço desde que me conheço, sempre os mesmos sorrisos, quase sempre as mesmas falas.

Ando neste vaivém trimestral vai para dez anos. Perguntando-me para quê e porquê, ao mesmo tempo incapaz de esconjurar o feitiço. Porque feitiço é, bruxaria poderosa.

Como não encontro explicação, digo-me que no geral ninguém leva a vida que quer, menos ainda aquela com que sonhou.

Começa-se com a ilusão de que tudo é possível, mas depressa surgem os obstáculos, os fossos, as armadilhas, os vendavais, as cadeias. Sobretudo estas últimas. E de nada adianta acreditar no benefício dos comprimidos, na bondade do semelhante, nos favores do padre Pio ou da Santa da Ladeira: desastres e reveses, doenças, as misérias várias que acompanham o existir, o que tiver de acontecer fatalmente acontecerá, ao seu fado ninguém escapa.

Às suas cadeias também não.