António José Saraiva e Óscar Lopes – Correspondência
Selecção, edição, prefácio e notas: Leonor Curado Neves; colab. Ana Sequeira de Medeiros – Gradiva, Lisboa, 2004/2005
Ao acaso de uma conversa mão amiga pôs-me ontem ao corrente do livro com o título acima, cuja existência eu desconhecia. Nas páginas que me foi dado consultar descobri sem surpresa que, na sua correspondência, os senhores em questão se entretiveram a danificar o meu bom nome.
A Saraiva (1917-1993) tinha eu, em tempo oportuno, pedido conta doutras patifarias e, como se verá adiante, já o tribunal o tinha condenado. Ao Lopes, na sua idade e estado, seria impiedoso lembrar a qualidade de lacaio do outro e a inata cobardia.
Às senhoras que fizeram a selecção, a edição, o prefácio e as notas, gostaria de assinalar que o seu trabalho ficaria completo se, nas notas, tivessem incluído o meu testemunho. Não o fizeram, mas não lho levo a mal, pois procederam da mesma maneira que algumas ilustres figuras da intelligenzia portuguesa se comportaram para comigo, ao conhecerem os factos na segunda metade dos anos setenta e, mais tarde, a carta que segue.
“Esqueça isso! Olhe que o Saraiva é um nome! Olhe que o Saraiva conhece muita gente! Tem muita força!” Outros, pragmáticos, atiravam com o que lhes parecia o argumento definitivo: “Que quer V.? E o filho do gajo é director do Expresso!” Mais pragmáticos ainda, alguns houve que reagiram com um aflito “Não me quero meter nisso!”, e a partir de então deixaram de me conhecer.
Mas agora que o livrinho está aí, malicioso e falso, atentando contra o meu bom nome, há pelo menos que tornar pública a carta que em Junho de 1986, a seu pedido, escrevi a Mécia de Sena.
Para mais do que isso falta-me o tempo, a vontade, e sobra-me o nojo.
Durante quatro anos, com um comportamento patológico e sem outro motivo que a inveja, “O Sartre Português” e a sua companheira fizeram-me a vida negra. E sem o apoio do meu colega August Willemsen (1936-2008) certamente teriam levado a melhor.
Dessa saga, em modesta imitação de Fernando Pessoa, guardo numa arca papelada suficiente para um livro que não escreverei. Mas, quem sabe, talvez um dia apareça uma investigadora a pedir-me a chave.
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Mécia de Sena
939 Randolph Road
SANTA BARBARA CA 93111
USA
Amsterdam, Junho de 1986
Minha prezada amiga,
Partilho a sua opinião sobre o desdém que merecem os cancans, mas para preencher as lacunas que existem no conhecimento que tem sobre a desastrosa passagem do António José Saraiva pela Universidade de Amsterdam, e rectificar o que lhe possa ter chegado de informações tendenciosas ou falsas, aqui lhe faço um resumo do acontecido. Para mim tarefa dolorosa, pois me obriga a recordar um período longo e triste, cheio de acontecimentos que, se tal fosse possível, eu preferiria esquecer.
A história começa em Viana do Castelo, em 1946, altura em que Saraiva foi no liceu meu professor de Português. Professor geralmente estimado, com uma fama que iria crescer quando no ano seguinte, creio, esteve brevemente preso.
Nós, rapazes, éramos então quase todos adeptos do Movimento de Unidade Democrática e pertencíamos ao MUD-Juvenil. Após esse contacto entre o professor e o seu melhor aluno - dizia-se que eu “tinha cabeça” e algum talento – os nossos caminhos separaram-se e, como é natural, Saraiva tornou-se para mim o ex-professor de quem eu, com admiração, lia as obras.
Voltámos a encontrar-nos quase vinte anos depois, em 1965, em Paris, num pequeno grupo de café onde, entre outros, apareciam também Maria Lamas, Júlio Pomar, Castro Soromenho, Joaquim Novais Teixeira, José-Augusto França, José Augusto Seabra.
Desse período guardo recordações várias, raramente nobres ou elevadas, antes picarescas, com rasteiras, burlas e traições, pulhices de sobra. Tenho presente a lembrança de uma conferência feita por Saraiva sobre um tema político que esqueci, perante um público estranhamente vozeirento e agressivo.
De traidor a filho da puta e vendido, de revisionista a lacaio do fascismo, creio que despejaram sobre ele a gama completa dos insultos pessoais em que a nossa língua é rica, acrescentados dos que nessa altura pertenciam ao calão político.
Saraiva, por razões que eu só viria a compreender ao conhecê-lo melhor em Amsterdam, e isolando-se demonstrativamente ao desligar (uma vez mais) o aparelho auditivo que usava, confrontava aquele burburinho com o desdém de quem se acha diante duma turma de alunos mal educados.
Enojado com a selvajaria do público, e apreciando pouco o pseudo-estoicismo do orador, no momento em que a coisa degenerou em zaragata e murros – na sala havia também adeptos do Saraiva - saí dali para nunca mais votar a pôr os pés nesses happenings, que hoje vejo referidos nos livros como “momentos altos da resistência anti-fascista”.
Quer durante as frequentes visitas que eu fazia a Paris, quer por carta, o contacto com Saraiva manteve-se. Ele tinha nesse tempo - falo agora de cerca 1967 – um contrato anual com o Centre National de la Recherche Scientifique, em condições, no seu dizer desagradáveis, mesmo humilhantes, e em conflito aberto com os colegas.
Dado que Saraiva, pelo menos em Portugal era um “nome” e, em nossa opinião, merecia condições mais favoráveis de vida e de trabalho, procurou-se fazer por ele o que pouco antes se tinha conseguido para o Castro Soromeno: um visto de residência permanente no Brasil e um posto de ensino na Universidade de São Paulo.
Para realizar isso esforçaram-se sobretudo Joaquim Novais Teixeira, Antônio Cândido de Mello e Souza (que era então catedrático na Sorbonne), Maria Isaura Pereira de Queiroz (socióloga brasileira de renome internacional), e o embaixador do Brasil.
Passo por alto os detalhes, mas o certo é que Saraiva conseguiu levar-nos às portas do desespero: um dia dizendo-se de malas prontas, no dia seguinte pedindo que se esperasse, mais tarde afirmando que não tinha interesse nenhum em partir, ou que a polícia francesa lhe apreendera o passaporte – e assim por diante. Até que, finalmente, todos nos desinteressámos, por caridade não se tornou a falar mais no caso, e evitou-se colar-lhe em público o rótulo de tarado que lhe púnhamos em privado.
Em 1968 a Prelo Editora, de Lisboa, ofereceu-me a oportunidade de publicar Montedor, o meu primeiro romance, e Saraiva, que tinha lido o manuscrito e apreciado o trabalho do antigo aluno, ofereceu-se para escrever um prefácio.
Também em 1968 visitou ele Amsterdam, altura em que o apresentei ao Professor Marcus de Jong, catedrádico de Português – e tradutor de A Holanda, de Ramalho Ortigão.
Tendo este falecido em fins do ano seguinte, e ficando vaga a cátedra, houve em 1970 o concurso público que é do seu conhecimento.
Entre os candidatos em presença – Jorge de Sena, Coimbra Martins e Saraiva – a comissão escolheu aquele que lhe parecia melhor: Saraiva. Diga-se de passagem que, consultado pela comissão, eu dei a Saraiva o meu apoio. As advertências que nessa altura o Prof. Roudil, catedrático de Espanhol e director do departamento, me fez a mim e ao meu colega August Willemsen sobre as qualidades de trabalho de Saraiva (“fracas”) e as suas qualidades humanas (“péssimas”) levámo-las nós, estupidamente, à conta da amizade que unia Roudil a I. Révah, e do antagonismo, para não dizer ódio raivoso, que este último mantinha contra Saraiva já desde os anos 40. (*)
É inacreditável – e só o meu colega Willemsen o poderá confirmar, pois ninguém senão nós ambos viveu isso de perto – a estranha metamorfose operada em tão pouco tempo: o Saraiva cortês, afável, com a boca cheia de camaradagens e lindezas, transformou-se literalmente do dia para a noite num tiranete que, nas coisas maiores como nas diminutas, no que respeitava o instituto ou a nossa iniciativa individual, pensava poder exigir sujeição absoluta ao seu modo de ver e de mandar.
Além disso, à boa e tradicional maneira portuguesa, formou-se logo à sua volta uma corte de estudantes e exilados, ansiosos por receber o evangelho maoísta que ele então pregava. Tanto dentro do departamento como nas relações pessoais, o ambiente tornou-se quase imediatamente insuportável.
Eu, avesso a camarilhas, sem disposição para lacaio, por natureza e formação com o coração perto da boca, e hierarquicamente numa situação frágil, reunia as qualidades que fazem a vítima ideal para as camarilhas e os líderes frustrados. Não foi guerra aberta, bem ao contrário, mas sorna, permanente e total. Não tivesse sido então a atitude e a solidariedade do meu colega Willemsen, Saraiva certamente teria ganho, pois enquanto que, segundo o regulamento universitário vigente na altura, a sua posição de catedrático era intocável, a minha não passava então da de um simples contratado em base anual para uma docência em part-time.
Essa guerra meteu de tudo. Nos quatro anos que durou, só por um triz e obedecendo aos apelos dos que me queriam bem, é que não passei a vias de facto. Os detalhes são demasiado longos para expor aqui, e a colecção de documentos, cartas, memoriais, alegações, etc. ocupa volumosas pastas, mas para lhe dar uma ideia do nivel dos ataques, esta pequena amostra: solicitado por Saraiva, Óscar Lopes prestou-se a ir ao liceu Alexandre Herculano, no Porto, para “averiguar” aí que eu apenas “tinha completado o terceiro ano”. Fazendo uso de uma tática e eficiência provada, e passando o detalhe de que Saraiva fora meu professor do quinto ano em Viana do Castelo, Óscar Lopes enviou telegraficamente essas “informações” ao seu comparsa Saraiva, o qual logo informou a reitoria da universidade de que eu tinha acedido a ela valendo-me valendo-me de “diplomas falsificados”. (**)
Não tendo essa habilidade e muitas outras, dado o resultado esperado, tentou ele outra via: eu recebia então do Instituto da Alta Cultura um modesto estipêndio mensal de dois mil escudos. Uma simples carta do marxista-maoísta Saraiva a Maria de Lourdes Belchior, catedrática ultracatólica e simultaneamente Madre Superiora das Escravas do Patriarcado – títulos destes não se inventam – que era então presidente do IAC, bastou para a suspensão imediata e sem argumentos do estipêndio.
Veio a revolução de Abril de 74 e eu parti para Lisboa a cobrir os acontecimentos para um semanário holandês e uma estação de rádio. No dia seguinte ao da minha chegada a Lisboa, o marxista Saraiva deu ao semanário de extrama-direita Accent uma entrevista sobre mim, cujas declarações foram nesse mesmo dia retomadas pelo De Telegraaf, jornal conservador e o de maior circulação no país, sob o título ”Um agente da PIDE dentro da Universidade de Amsterdam”.
Várias estações de rádio referiram igualmente a notícia nos seus programas de actualidades, acrescentando então que já me encontrava preso.
Semelhante acusação nesse momento, com o “agente da PIDE” a passear nas ruas de Lisboa, era suficiente para acarretar consequências desagradáveis, para não dizer perigosas.
Com repugnância, mas à cautela, requeri à Junta de Salvação Nacional que averiguasse e passasse o papelinho ilibatório de que eu não figurava nos arquivos da PIDE. No dia seguinte, de volta a Amsterdam, pedi uma entrevista ao presidente da Universidade, que logo ma concedeu e que, já ao corrente do acontecido, me aconselhou a que levasse Saraiva a tribunal.
Assim fiz. Seguiu-se um longo processo jurídico, mas a 4 de Outubro de 1974 o tribunal de Amsterdam condenoui Saraiva por difamação. Ficou-lhe proibido expressar sobre mim em público quaisquer opiniões; esteve a sentença, por decisão do tribunal, exposta durante oito dias nos quadros de avisos da universidade; foi o réu condenado às custas do processo.
Quase logo a seguir mandaram-lhe que se apresentasse no gabinete do presidente da Faculdade de Letras, onde lhe foi dito que assinasse a carta de demissão que para ele tinham preparado. Ele assim fez, evitando maior escândalo.
Na mesma altura veio a saber-se que, tomando cautelas, tinha entretanto cuidado que o nomeassem catedrático da Universidade Nova de Lisboa.
Este é, verdadeiro e muito resumido, o relato dos acontecimentos passados e, pelo que me respeita, espero que seja a última vez que mexo em tanta sujidade.
Com um abraço cordial do
J. Rentes de Carvalho
(*) Israel Salvator Révah (1917-1973). Professor de estudos hispânicos no Collège de France. Grande conhecedor dos arquivos da Inquisição. Contribuiu largamente para o estudo do judaísmo espanhol e português. Especialista de Gil Vicente. Foi amigo íntimo de Saraiva nos anos 40, acusando depois este de lhe ter roubado o material que ele, Révah, tinha sobre Gil Vicente, e de ter utilizado esse material para a sua (de Saraiva) tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa.