A Praga
Por vezes penso que ainda há esperança e que o bom senso levará a melhor. Mas ao ler que este ano, em torno de mundo, mais de seiscentos milhões de turistas terão atravessado as fronteiras e ido de praia para museu, de catedral para ruínas romanas, de parque de campismo para parque de atracções, de porto típico para gruta pré-histórica, mergulho em desalento. Perseguem-me as imagens que todos conhecemos dos monstruosos ajuntamentos. Meio milhão de corpos numa praia, meio milhão ou mais na seguinte. Filas de automóveis com dezenas de quilómetros. Os doze milhões de basbaques que anualmente passam as portas da catedral de Notre Dame em Paris. Doze milhões! Para ir ver e dizer que viram. Para poderem escrever para casa o postal com as palavras imortais: 'Esplêndidas férias. Vamos bem.'
Mas Notre Dame e milhares de outros monumentos, reservas naturais, praias e florestas, não vão bem. Por toda a parte são visíveis os estragos que lhes causa a desenfreada “admiração” do turista. As estátuas enegrecem de ser tocadas por centenas de milhar de mãos gordurosas, soalhos históricos cedem sob o peso das massas de gente, as praias tomam a desolação de lixeiras, vitrais e pinturas sofrem com o suor condensado de milhões de corpos. Os mesmos milhões que se julgam conscientes da necessidade de melhorar o meio ambiente, da urgência de salvar as espécies raras da fauna e manter límpida a água dos rios e dos mares.
Contudo, nenhuma força contrariará o instinto poderoso de rebanho que os leva a procurar na Costa Brava o mesmo sol que brilha nos seus quintais. Nenhum sermão os convencerá de que o seu comportamento não é o dos indivíduos que eles próprios julgam ser, mas o de eternos carneiros, tão dóceis que nem sequer precisam pastor: vão porque os outros vão ou porque os outros foram.
Nessa ânsia de movimento e imitação, de ver e palpar, pela simples força do seu número conseguem destruir o que tinha resistido aos séculos. O granito das escadarias romanas quebra, o mármore dos templos gregos esboroa, as estátuas da Renascença vêem o seu bronze corroído. Tão inconscientemente perigosos se tornam, que já ouvi aldeãos dizer “Vêm aí os turistas”, no mesmo tom preocupado com que falam das pragas que lhes ameaçam as colheitas.
Felizmente nem tudo ainda está perdido. Pelo menos na Itália - a Itália de quem sempre se diz que é desleixada, que não sabe cuidar - as autoridades tomaram a sábia medida de pôr a bom recato as obras de arte mais frágeis, substituindo-as por réplicas. Os franceses fizeram o mesmo com as grutas de Lascaux, cujas pinturas rupestres conseguiram sobreviver dezassete mil anos, mas por pouco escaparam à curiosidade dos basbaques. Para eles, que nada respeitam e com tudo se contentam, foi criada a ilusão de Lascaux II. E eles acorrem de longe às dezenas de milhar nos seus uniformes de veraneante, a máquina fotográfica a pendular sobre a barriga, o vídeo a tiracolo, a mulher e a filharada a reboque, para nas grutas, nas praças e nas igrejas se embasbacarem diante do pechisbeque.
Quando li essas boas notícias, tomou-me um sentimento metade malícia, metade tristeza. Eu sei que nada exterminará o turista: ele procria, associa-se, faz prosélitos. Oiço dizer que os seiscentos milhões deste ano serão mais de seiscentos e cincoenta milhões em 2010. Os próprios governos aliciam-no para que viage mais e mais. Porque viajando deixa lucro. (Os danos causados? Quem então viver que cuide.) A indústria e o comércio enfeitiçam-no com folhetos sobre paragens exóticas, onde o sol brilha em permanência e todos os dias são de festa. Onde o mar é sempre calmo, o bosque sempre verde, o amor, a amizade e o sexo sempre à mão. E ele, crédulo, só sonha em partir.
Por isso não há esperança, o que entristece. Mas há um prazer malicioso em imaginar o turista, macaqueador por excelência, caminhando em massa para os museus de réplicas num mundo de pacotilha.