A questão premente, todavia, seria a que se põe em relação ao interesse de tal livro. De mais um livro sobre o país que, consultadas as estatísticas, provavelmente é daqueles que no mundo têm sido mais analisados, dissecados e estudados.
Como se ela exerça uma espécie de mágica, mal o viajante estrangeiro põe pé na Holanda e contacta, intimamente ou à distância, com a gente que a povoa, o primeiro impulso a que cede é o de escrever sobre ambos.
Pode talvez adivinhar-se nisso o fascínio que causa o saber a terra abaixo do nível do mar - facto, aliás, em que muitos não acreditam e supõem propaganda turística - ou a paisagem plana, a estranheza de alguns hábitos, as tulipas, os moinhos, o génio de Rembrandt.
Mas como explicação não basta. Existem pintores geniais, moinhos e tulipas noutras nações. Planas como o pólder são-no as estepes da Hungria, as pampas da Argentina. E aqui e além no globo deve haver mais pontos onde os diques evitam que o mar inunde as terras. Fora de que os usos e costumes dos uzbeques ou dos índios tupi serão aos olhos do comum ainda mais exóticos.
Contudo é sobre a Holanda e os holandeses que os viajantes obstinadamente escrevem, numa série que, começada por Júlio César nos tempos em que Roma era império, se mantém nos nossos dias, cada um dos escritores dando-se a ilusão de que descobre novos aspectos no país e novas bizarrias nos costumes da sua gente.
É de uma ingenuidade igual à de querer reinventar a roda, e tanto mais surpreendente porque as críticas são idênticas às que a este povo foram feitas ao longo dos séculos. Eu próprio de boa vontade confesso aqui mea culpa, e quanto mais leio o que antes de mim foi escrito sobre os holandeses, maior se torna o meu acanhamento de, por ignorância, embora francamente, ter repetido o que muitos já tinham constatado.
A questão, porém, continua em pé, de saber donde virá esse fascínio multisecular e internacional que leva a afogar os holandeses em críticas acerca das suas maneiras e costumes, e ao mesmo tempo gabar-lhes as indiscutíveis qualidades de organização, de persistência, e do seu génio para o negócio. Em ambos os casos com uma exaltação que fatalmente resulta em que se criem mitos bons para o comércio e desastrosos para a fama. Mitos esses, aliás, que os holandeses, com o génio comercial atrás mencionado, se esforçam por manter vivos, estando-se nas tintas para a boa ou má reputação que possam ter aos olhos de outrem.
Assim o turismo, para só citar essa importante actividadde, desenvolve-se sobretudo em torno do mito de que o país inteiro é um campo semeado de tulipas e moinhos, com lavradores de tamancos que, vestidos como os pescadores de Volendam, criam vacas e andam de pá na mão a levantar diques contra a água.
Da má fama não vale a pena falar, pois devido ao excesso de atenção que se lhes vota, os defeitos dos holandeses, que aliás são os mesmos de que padece o resto do mundo, surgem grosseiramente ampliados, dando a impressão de que a cada esquina se topam monstros de rapacidade, de avareza ou vício.
Mais de uma vez me tem sido perguntado se não receio andar pelas ruas de Amsterdam, e como respondo pela negativa o olhar dos meus interlocutores traduz em geral uma forte descrença, pois o mito tem isso, exige a todo o preço que a realidade se lhe conforme.
Fora as centenas de artigos, comunicações e ensaios que no correr do tempo devo ter lido sobre a Holanda e os holandeses, na minha estante alinham-se umas quatro dezenas de livros sobre o mesmo tema. E é olhando-os que me ocorre que, a resposta à questão que antes me pus, talvez se não deva procurar no espanto dos estrangeiros, que chegando aos Países-Baixos logo desatam a escrever, mas naquilo a que hoje é moda chamar interacção.
Porque ao maníaco afã de escrita a que os estrangeiros se dão, indubitavelmente corresponde, por parte dos holandeses, uma não menos doentia curiosdade para saber o que deles se conta. E se sobre poucos povos se terá escrito com semelhante profusão, também é facto que nenhum outro, como o holandês, gosta tanto de ler as invectivas que lhe atiram e os cumprimentos que lhe fazem. Desde que isso não afecte o bom andamento dos seus negócios - e de que modo o poderia afectar? - ele delicia-se com a atenção que lhe dão, saboreando os cumprimentos com uma alegria infantil, sofrendo as invectivas com insensibilidades de masoquista.
Será isso uma fraqueza? Uma virtude? Provavelmente nem uma coisa nem outra. Apenas um modo de reagir decorrente de circunstâncias não exclusivamente humanas, mas sociais, históricas, geográficas, e Deus sabe quantas ainda. Porque não se é impunemente país pequeno rodeado de outros bem mais vastos. Nem impunemente se vive junto de um mar que, ora é benesse e salvação, ora sem aviso se torna perigo mortal. Ainda menos impunemente se é desenvolvido e rico sem medida, quando em volta surgem focos de atraso e de pobreza.
E assim retorno aos paralelos e diferenças que atrás esbocei. Portugal é também pequeno, escondido num canto da Europa, mas outrossim amarfanhado pelo tamanho territorial e o poderio económico da Espanha. O mar quase sempre lhe foi ameaça e no séc. XVI motivo de riqueza e glória. Só que de maneira fugaz, sem que a riqueza adquirida fosse utilmente aplicada.
Por si própria, a glória passada nada garante no presente ou no futuro. É um bem respeitável, mas defunto, que no máximo empresta certo cachet aos monumentos e aos poemas históricos. Sabendo não ser rico e pouco desenvolvido, é talvez por essa razão que em Portugal se sofre tão mal a crítica, mesmo quando ela é justa e bem intencionada.
De longe a longe, em vez de fingir que hiberno sonho acordado. Belos sonhos em que me dou a omnipotência de Deus e a paz dos homens de boa vontade.
Elimino verdadeira e definitivamente as fronteiras do continente. Todas. Repetindo De Gaulle faço uma Europa que vai de Lisboa aos Urais e nela uno alegremente os povos, cuidando que ao espírito libertário de um se misture o romantismo doutro e a sensibilidade dum terceiro. No mesmo cadinho fundo a argúcia que estes mostram, o talento que aqueles têm para criar e organizar, a arte serena com que alguns sabem gozar a vida.
O bom Deus permite-me que, descartando as diferentes versões da moral e da hipocrisia, eu espalhe, também de Lisboa aos Urais, a franca liberdade que sem entraves permite gozar do sexo.
Enriqueço as escolas. Diminuo as diferenças que separam os abastados dos pobres. Nessa Europa que sonho, ninguém terá de sofrer que lhe falte o comer ou o tecto, ou que a doença o obrigue a uma existência indigna. A polícia e as ambulâncias acorrerão no momento em que for pedida a sua ajuda. Velhos, doentes, solitários, todos receberão os cuidados e os conchegos de que necessitam. As comunicações serão quase instantâneas. Os jornalistas escreverão livremente, à televisão ninguém porá peias. Os escritores e os artistas serão acarinhados. Por toda a parte se ouvirão orquestras e não haverá domingo sem festival.
Querem os povos viajar, embora o que daí lhes advem seja mais ilusão do que outra coisa? Se isso os torna felizes, pois que viajem! Se encontrem! E encontrando-se se amem e multipliquem.
Quando me passa a onda de megalomania e aterro com ambos os pés no dia-a-dia, dou-me conta que essa Europa com que sonho já se realizou. Existe na Holanda e um pouco também por aqui e por ali. Infelizmente, quase tenho a certeza de que a morte me levará antes que ela alastre até Lisboa. E aos Urais, se alguma vez lá chegar, será mais tarde ainda. Por isso a ninguém deverá fazer espécie que, dilacerado por sentimentos contrários, gozando de um bem-estar que não posso repartir com os outros a que também pertenço, eu, em vez de criticar ou de louvar, tenha optado pela fantasia e nela me refugie, ora a fingir que hiberno, ora a sonhar o impossível.
FIM