Este tempo põe-me azedo. Dias atrás fui a Lisboa em visita relâmpago. Falei com este e aquele, vi isto, ouvi aquilo, dei umas voltas…
Da chuva, dos encontros, ou do que vi e ouvi, certo é que retornei mais azedo do que tinha ido e, vingança de escritor, deitei-me a escrever com fel. Infelizmente, como nem a prosa saía direita, nem os raciocínios me satisfaziam, fui ler as Prosas Bárbaras do então jovem Eça de Queiroz. E lá encontrei as palavras para o meu azedume.
“Lisboa que faz?
Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava e que falava, que tinha o verbo e a luz. Roma criou a justiça, Atenas idealizou a carne, Jerusalém crucificou a alma... Paris, Londres, New York, Berlim, suam e trabalham, em espírito. Ela (Lisboa) não tem que semear: por isso ressona ao sol.
Às vezes, porém, comete o mal, enterrando as ideias. Onde? Na escuridão, no silêncio, no desprezo. Lisboa é um pouco coveira d'almas! ..... Como Roma, ela tem sete colinas; como Atenas, tem um céu tão transparente que poderia viver nele o povo dos deuses; como Tyro, é aventureira do mar; como Jerusalém, crucifica os que lhe querem dar uma alma. Todavia, Lisboa o que faz? Come... Lisboa nem cria, nem inicia; vai.... Em política copia Sancho Pança... No vício é tímida: copia desajeitadamente as Babilónias distantes: aproveita o fogo de Sodoma para aquecer os pés; apara as unhas ao Diabo; é o banho tépido dos pecados mortais... Lisboa, de noite, é tão silenciosa que quase se sente o crescer da erva que a há-de cobrir no dia das ruínas.
É tão triste, que à noite parece um arrependimento da vida!... Nas belas moradas, nos casebres, nas trapeiras, em cambraias, em farrapos, em palhas, por toda a parte, há um vasto sono inerte e vegetal.
Que fazem, entretanto, os errantes da noite, a família Vício, a gente crepuscular, os herdeiros terríveis de Lovelace e de D. Juan Tenorio?
Compram, na penumbra doméstica, o amor fuliginoso das cozinheiras; comem melancolicamente mexilhões nas tavernas; os mais pobres encostam-se às esquinas, esfarrapados e doentes, cariátides sonolentas do tédio... Em Lisboa a vida é lenta. Tem as raras palpitações de um peito desmaiado. Não há ambições explosivas; não há ruas resplandecentes cheias de tropéis de cavalgadas, de tempestades de ouro, de veludos lascivos: não há amores melodramáticos: não há as luminosas eflorescências das almas namoradas da arte: não há as festas feéricas, e as convulsões dos cérebros industriais...
Atenas produziu a escultura, Roma fez o Direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou?
O fado.
Fatum era um Deus do Olimpo; nestes bairros é uma comédia. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros... Fica-te em paz, Lisboa! Dorme, digere, ressona, soluça e cachimba... Os que têm alma não querem a luz dos teus olhos... Os que têm coração não querem a carícia das tuas mãos... Tu tens a beleza, a força, a luz, a graça, a plástica, a água resplandecente, a linha magnífica! Resigna-te, oh Lisboa querida, oh clara cidade bem-amada, oh casta graça silenciosa, resigna-te, oh doce Lisboa coroada de céu, resigna-te - a não ter alma!”