Da primeira vez só me apercebi que o homem sorria. Que me sorria. Da segunda, encontrando-o noutro lugar, sorriu de novo, fez um pequeno gesto como se nos conhecêssemos e eu, reconhecendo-o, sorri-lhe também.
De longe a longe cruzávamo-nos na rua, ele sorria, fazia aquele aceno amigável e passava. Um sujeito gorducho, atarracado, de idade indefinida, vestido com um sobretudo verde, dando nas vistas devido ao exíguo chapéu que parecia não ter outro propósito senão estar prestes a cair-lhe da cabeça.
Um dia veio do outro passeio a correr, direito a mim, a acenar-me que esperasse. Acelerei o passo, receoso de que tivesse começado a funcionar de novo o magnetismo com que, infalivelmente e contra vontade, atraio bêbedos e fracos de espírito.
Ele deteve-se para deixar passar um eléctrico e pôs-se ao meu lado, acertando o passo. A sorrir. E eu sorri-lhe. Caminhámos assim uns instantes, até que de repente desapareceu por entre a multidão que enchia a rua.
- É tarado - disse comigo.
Devia ser, porque uns dias mais tarde, ao tirar o porta-moedas do bolso para pagar o jornal, senti que alguém me tocava o braço. Era ele, mas sem sorriso, só com aquele modo que tinha de levantar o queixo e franzir os lábios, talvez um « Boa-tarde » sem palavras.
Aparecia, desaparecia. Aconteceu-me encontrá-lo acompanhado de uma mulher alta e gorda, em cujo braço ela parecia pendurar-se. Nessas ocasiões olhava-me de lado, como que receoso de que eu lhe falasse.
Um sábado, no largo fronteiro à estação, atravessou-se diante de mim, fazendo um grande esforço para dizer quelquer coisa. Parei e esperei, paciente, sem receio, certo de que não se tratava dum furioso.
- Chama-se Samuel?
- Não.
- Palavra que não?
- Palavra.
- Traidor! - gritou ele, antes de deitar a correr.
Houve gente que parou, suspeitando zaragata. Outros olharam com desprezo, como quem testemunha uma inconveniência.
Anteontem encontrei-o de novo. Sorridente, acertou o passo pelo meu, outra vez com aquele seu modo silencioso de levantar o queixo e franzir os lábios.