Nessa altura o senhor Viriato andaria pelos cinquenta, mas comparado com meu pai fazia figura de ancião.
Estatura mediana, encorpado, mãos desmesuradas, vestido de remendos, nas tardes de domingo sentava-se connosco no areal e aceitava um copo de vinho, ou ele próprio ia buscar o garrafão que trazia sempre na masseira, para oferecer uma pinga a quem lhe merecesse simpatia.
Mais amigo de ouvir que de falar, entretinha-se na vistoria dos apetrechos da pesca e, de quando em quando, levantava uns olhinhos de réptil, a mostrar que seguia a conversa.
De repente resmungava frases desconexas e, sem explicação nem despedida, levantava-se, amanhava a rede, pegava nos remos e metia-se no barco de volta à Ínsua.
Eu, que só os ouvia interessado quando falavam de tiroteios e perseguições, subia ao alto da duna a acompanhar o progresso lento do barco. Via-o passar da calma do rio para a ligeira ondulação da foz, acavalar-se depois nas ondas, até que chegava à língua de areia da ilha, onde o mar quebrava.
Seguia-lhe a manobra, via o senhor Viriato curvado no esforço de puxar o barco para seco, retirar a rede, estendê-la entre os remos, encaminhar-se lentamente para o forte, e desaparecer na muralha. Como um pirata, imaginava eu.
Em rapaz tinha andado embarcado. Conhecera o Brasil, a América, a costa de África, os ciclones, os trabalhos do Cabo Horn. Um dia em que eu o fora ajudar na apanha dos mexilhões nos penedos, pusera-se a contar as suas aventuras, como que tomado por um irresistível desejo de confissão. Entremeando longos silêncios que me faziam sentir culpado, porque talvez lhe não prestasse atenção bastante, ou a minha pouca idade me não permitisse avaliar tanta confidência. De súbito, num dos seus repentes, tinha-se virado para o mar e, estendendo o braço, assegurou-me que quem fosse capaz de seguir por ali fora, como por uma corda esticada, chegava a Boston.
Eu próprio chegaria a Boston anos mais tarde, por vias bem travessas. Em Nantasket Beach, num momento de euforia, iria surpreender-me a recordar a corda mítica com que o senhor Viriato unira a América ao forte da Ínsua.
Sentado na areia fitando o oriente, voei como num sonho para as paisagens e os rostos da minha adolescência. A reviver as alegrias, os entusiasmos, os amores, como se tudo fosse intemporal e infindo, meu para sempre.
Só depois me viria a dar conta que, nessa altura, eu desconhecia o verdadeiro peso da nostalgia. Quando evocava recordações, não precisava como agora de ir buscá-las a um passado longínquo, cheio de perdas irremediáveis, porque todas elas se achavam confortavelmente próximas.
Então, o avivá-las, ainda não era dor, apenas distração do pensamento.