As palavras nem sempre bastam para retratar um personagem. No caso de Boris seria preciso juntar-lhes o olfacto e aquele poder de raios-X com que, por vezes, descobrimos em alguém uma essência que, outrossim, se mostra refractária a ser descrita ou definida.
Filho duma russa e dum comunista basco, que por voltas de 1937 se tinha exilado na União Soviética, Boris nasceu em Leninegrado. São Petersburgo, bem sei, mas ele próprio continua a chamar-lhe assim.
No tempo em que travámos conhecimento, havia anos que desertara do navio onde andava embarcado, e possuía em Rotterdam um café, um próspero negócio de máquinas de diversão, e uma rede de relações tão vasta que, no seu dizer, lhe permitia tratar de tudo e com todos, do mais baixo ao mais distinto. Fora isso tinha ganho nome como boxeur, era agradável no trato e diziam-no correcto em questões de contas.
A razão do persistente cheiro a fera que o rodeava, só mais tarde e por acaso, a viria eu a descobrir. Mas a essência do seu carácter - indescritível, indefinível - essa revelava-se sobretudo no primeiro encontro, ao ver-se surgir aquela cabeça de gigante e tronco conforme, apoiados sobre pernas curtas e cambadas. Olhos de azeviche, irrequietos. Bigode mexicano, de pontas pendentes, que lhe dava um ar de falsa bonomia. Um sorriso de que não era fácil discernir a qualidade, pois tanto poderia ser troça, como estupidez ou ameaça. Em geral era ameaça.
Cada vez que me acontecia ir a Rotterdam, criei o hábito de o visitar, fascinado pela extraordinária amálgama de negócios que o ocupavam, entre os quais as máquinas de diversão pareciam ser uma parte diminuta que ocupava dois aprendizes numa garagem. O resto era como nos romances: duma casinhola de madeira no terreno das traseiras da casa, Boris traficava, manipulava, arranjava, alugava, vendia, ria às gargalhadas dos 'anjinhos' que havia no mundo - entre os quais também de bom gosto se incluía - telefonava, gritava com a mulher, e bebia litros de chá. Sem anúncio nem cortesias de despedida, também era capaz de num repente saltar para a carrinha e desaparecer por dias ou semanas.
O seu fraco eram os animais. Mas nada de cães, gatos ou bicharada miúda. Só o contentavam os grandes e por isso, no anexo que ligava a casa à garagem, tinha construído um verdadeiro jardim zoológico clandestino com jaulas em que eu, com suspresa e alguma preocupação, um dia descobri um leão de meio ano, uma hiena, uma onça, jibóias, macacos vários.
À solta, preso a uma corrente que qualquer criança quebraria, deambulava o seu favorito, um urso castanho que, da primeira vez que o descobri agachado a um canto, quase me matou de susto, porque a minha miopia o confundira com um inofensivo monte de trapos.
Falando-lhe russo, abraçado a ele a ensaiar passos de dança cada vez que entrava no anexo, Boris espalhava um forte odor a urso, que só com o tempo e muita simpatia era possível aceitar.
Fora os animais tinha ainda outra paixão: o equipamento militar. As armas com certeza as guardava em segredo nalgum armazém, porque nunca lhas vi, mas os recantos e dependências da casa eram um verdadeiro empório de tendas, de cantis, mochilas, botas e barretes, uniformes, cinturões, emissores de rádio, telefones de campanha, pás e picaretas, antenas, holofotes...
Dando gargalhadas, Boris gostava de repetir a estória de como a sua mania de acumular coisas militares quase tinha resultado em desastre para a família.
Na sala, único lugar onde o tropeço cabia, e à espera de mais tarde lhe dar destino, tinha ele arrumado a enorme embalagem de um salva-vidas de borracha, relíquia proveniente de um destroyer britânico da Segunda Guerra Mundial, e o qual, segundo as inscrições laterais, podia acomodar doze pessoas. Outra inscrição, sob a palavra CAUTION! pintada a vermelho, indicava que, puxando a corda, a embarcação se inflaria dentro de trinta segundos.
Com o correr dos anos a “jangada”, como ele lhe chamava, passara a fazer parte da mobília e, quando alguém curioso como eu perguntava o que era aquilo, Boris parecia ter dificuldade em recordar a utilidade do trambolho. Até ao dia em que uma festa de aniversário lhe tinha enchido a sala com familiares.
A certa altura, esvaziadas muitas garrafas de vodka, alguém tivera a má ideia de afirmar que, puxando a corda, não aconteceria nada. Depois de tantos anos o gás há muito que tinha escapado. Ai não? Queriam apostar? Era só trinta e um de boca?
Uns contra, outros a favor, o dinheiro começou amontoar-se sobre a mesa. Quando mais ninguém quis apostar, Boris levantou-se, deu um esticão à corda. E aconteceu!
O barco começou a inchar com extraordinária força, quebrando a mobília, as vidraças, a loiça, semeando pânico, sufocando as pessoas que, aos gritos, se arrastavam pelo soalho à procura da porta. Até que Boris, encontrando uma navalha, a espetou várias vezes no revestimento de borracha, com a fúria de quem se defende dum monstro vivo.
Ao contar a cena não parava de rir, lembrando o embaraço do cunhado que, por ter borrado as calças, recusava levantar-se do chão.