terça-feira, janeiro 8

Calores

Sexo. Séculos de moral, bons costumes e polícia fizeram-nos perder o natural que, nesse particular, alegra ainda a vida dos animais e dos insectos. Felizmente que assim é. O mundo andaria às avessas se na vida social se mantivesse nas coisas do sexo o desregramento da bicharada. Imagine-se um maquinista a abandonar o comboio para, tal um gato, ir copular num fosso com uma dama benevolente. Imagine-se um presidente dando largas ao cio no decurso dum desfile. Ou a menina da caixa no supermercado... Os políticos que nos governam também o não tolerariam, e os sacerdotes dos vários credos acenderiam de imediato as fogueiras das suas inquisições. Mesmo muitos de nós se levantariam para protestar contra os riscos e desconfortos que traria o copular público e inesperado. Por isso aceitamos o jugo da lei, fingimos desinteresse pelo grande motor da existência e, com uns resmungos pro forma, sacrificamos o alegre caos do instinto à monotonia da civilização. O que todavia não impede que em certos lugares, certos dias, pairem no ar eflúvios misteriosos. O bicho que permanecemos reconhece então, por momentos, a mensagem dos odores, descobre o significado dos modos de andar, sabe por intuição o que escondem os olhares e os gestos.

Quando numa tarde quente de Agosto entrei no Sheraton, em Lisboa, surpreendeu-me a frescura do ar condicionado e a agitação do ambiente. No hall havia um grande número de mulheres, e os homens presentes pareciam executar em torno delas um bailado sem ritmo nem fito certo.
O recepcionista ia entregar-me a ficha do quarto quando uma senhora de idade o interrompeu:
- Ó senhor Abílio, isto é congresso?
- Não, Dona Maria, são tudo hóspedes. O hotel está um bocadinho cheio.
- Hóspedes uma gaita! - replicou a senhora com inesperada vivacidade. E voltando-se para mim:
- Isto está a ficar como Bangkok. Conhece Bangkok?
- Não conheço, mas faço ideia.
No ascensor - por simples acaso íamos ambos para o mesmo andar - ela achou uma pouca-vergonha que um hotel de luxo se abandalhasse assim. Porque se eu não sabia ficava a saber, aquilo eram tudo mulheres da vida.
Fiz-me surpreso e retorqui que não. Uma ou outra, talvez, mas a maioria via-se-lhes pela cara que eram senhoras de respeito.
Ela riu: - Pobre de si se ainda vai pelas caras! Senhoras de respeito uma fava. As que parecem sérias são as do part-time.
Achei exagero, mas não a contradisse. Mais tarde, quando voltei a descer, notei que de facto no hall havia um ambiente de extrema tensão erótica, menos devido aos ademanes das três ou quatro prostitutas de serviço, do que à indefinível electricidade que parecia faiscar entre os presentes.
Nenhum gesto era inocente, nos olhares havia espectativa, liam-se nos rostos desejos insanos, sentia-se que a virtude e a fidelidade, mesmo a decência, estavam ali por um fio.
- É do calor - disse-me o porteiro, habituado a ler pensamentos.

Quando ao fim da noite regressei ao hotel, cansado e de mau humor, o hall estava em penumbra, quase deserto. A única algazarra era a de uma tripulação sul-africana, à espera do ascensor para o bar no último piso. Subimos juntos. Entre si trocavam gracejos sem malícia, dum picante infantil, a exuberância que vem depois de muitas horas de voo e tensão. Por minha parte achei curioso que não me custasse a compreender o afrikaans que falavam, zumbando de uma das hospedeiras, que se destacava pelos seus quase dois metros, a excessiva timidez e o modo como corava.
Os outros aperreavam-na, criticavam-lhe a falta de líbido, instavam que confessasse a sua virgindade. Ela sorria e corava. Mas de súbito, com a leviandade comum aos grandes tímidos, certa de que fora os colegas ninguém a compreenderia, e no ascensor do hotel português só se encontrava um estranho com cara de português, ousou mostrar-se atrevida:
- Virgem ou não é cá comigo, mas se este velhote careca quisesse, não me importava de ir para a cama com ele.
No meu melhor neerlandês, sem me descompor, respondi-lhe que me custava a crer que falasse a sério, mas enfim...
Foi um pandemónio. Poucas vezes terei testemunhado semelhante explodir de riso, ou vi alguém em tão profundo embaraço baixar os olhos e enrubescer assim.
O ascensor parou, mas eles não queriam que eu saísse, insistiam que os acompanhasse, coincidências daquelas mereciam festejo. Além disso gostavam que lhes contasse onde aprendera a língua.
Desculpei-me dizendo que a história era longa e a hora tardia. Depois, no quarto, ainda sobre a impressão de que, em certos lugares e certos dias, como que pairam no ar eflúvios estranhos, sentei-me a escrever este relato.