Tempo passado, em conversa com um amigo, por coincidência alto funcionário de um ministério, estranhava eu que o Governo nada fizesse para sustar o êxodo das aldeias, do que infalivelmente resulta a desertificação das províncias e o aumento dos bairros de miséria em torno das cidades.
Homem pragmático, sossegou-me ele com uma pancadinha nas costas. Preso a um idealismo obsoleto, explicou, eu tinha parado no tempo, continuava a não querer enfrentar a realidade e, teimosamente, decidira manter-me cego.
Pois só um cego, disse, não se daria conta de que à romântica solidariedade dos anos 70 e da Revolução, tinham sucedido as duras leis da economia do mercado, onde não há lugar para tibiezas. Aliás, bem vistas as coisas, o êxodo dos aldeãos para as cidades, por certo lastimável, também tinha lados positivos. E gargalhando da boa piada, acrescentou:
- É que não há falta de operários e arranjam-se mulheres a dias muito em conta.
Não me lembro do que lhe respondi, mas a minha resposta não deve ter sido a que o seu comentário pedia. Que o fosse, ele não lhe teria dado ouvidos.
E é essa a verdade: ansiosa por parecer moderna, europeia, a nossa sociedade continua desesperadamente arcaica e bizantina. Nela os brandos costumes escondem o desespero de viver, as infindas cortesias mascaram as raivas subjacentes, a hipocrisia leva a melhor sobre a franqueza.