domingo, abril 13

Travessuras da memória

 

Facto é que para minha surpresa, e por vezes a dos que me conhecem, a memória ainda não dá excessivas razões de queixa ou alarme. Isso mesmo quando lhe peço que me recorde o nome de uma estrela do cinema alemão dos anos quarenta, o título de um filme italiano clássico ou, em desafio, me traga à lembrança o nome e as qualidades do personagem principal de Cem anos de solidão, o romance de Gabriel Garcia Marquez.

De uma maneira ou doutra, questão de sorte na lotaria da genética, puro acaso, ou talvez resultado de que, nos alimentos minha longínqua infância e juventude, o superfosfato da CUF era a única mixórdia química que adubava os campos.  Nesse antigamente, o trigo, o centeio, a aveia, o milho, as batatas, fruta, hortaliça, tudo se semeava e crescia em campos que, saudável e naturalmente, eram  adubados com o fermento do esterco animal e humano.

Não se vá pensar, todavia, que estou alegremente a bater no peito, inchado de segurança, pois não me faltam momentos de susto, ou até verdadeiro pânico como – felizmente espaçados – ver-me de súbito a apertar a mão de um conhecido, sentir-me incapaz de recordar o seu nome e, na vã tentativa de ocultar o doloroso embaraço, embrulhar-me num diálogo sem pés nem cabeça, a fazer observações que lhe parecerão disparatadas, mas são apenas a cortina de fumo a esconder o torvelinho que nesse instante me assalta o cérebro.

Assim, pois, se tenho algum motivo para me felicitar pelo razoável funcionamento da caixa cerebral que armazena os dados, não perco de vista a realidade de que, de um momento para o seguinte, basta um diminuto nada, um átomo destrambelhado que mude de lugar, e então segurança, satisfação, certezas,  calma, horas de paz, vai tudo água abaixo.

 

quinta-feira, abril 10

Que liberdade ?

 

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domingo, abril 6

Forca sem corda

 

Nem todos os casos se podem contar, pois mesmo quando os embrulhamos em ficção, e se situam os personagens e as peripécias em lugar distante, há muitas vezes um passo em falso na narrativa, ou detalhe traiçoeiro que escapa, pondo então fim ao enredo e ao intuito de esconder.

O sofrimento destes merecia um Camilo, mas homem, mulher ou transgénero com o talento desse gigante literário está para nascer, pois os escribas que por aí andam nem aos calcanhares lhe chegam. Além de que muitos desses pouco sabem da arte da escrita, e dos enredos da boa ficção ainda menos, vêem na gramática uma desnecessária geringonça, que para mais não serve do que impedir o livre curso do historial dos seus enredos e emoções.

Sobre os personagens antes citados vamo-nos então contentar com um mínimo de referências, e essas serão de que nasceram filhos únicos em família remediada, numa vila de província que, nalguns aspectos, é de facto um presídio social.

Começou a tragédia pelo pai, que uma noite ao jantar se tinha de repente levantado, acenando o que parecia uma desculpa. Porque estranharam que demorava foi ele à procura, e o grito que deu ao vê-lo enforcado ecoou na rua, acudiram os vizinhos. Iria repetir-se a tragédia coisa de ano e meio depois, o avô pendurado na mesma trave.

O casamento deles, já no tarde, tinha sido comunhão apalavrada das posses e alguma simpatia, que amor de verdade é o das telenovelas. Felizmente nasceu-lhes um anjo, e quase dezassete anos conheceram o Paraíso, julgaram que seria para sempre, viriam netos.

Só que em vez de netos veio a droga, veio o martírio, sobram as ameaças. Não lhe neguem o dinheiro, que ela adivinha como o escondem. E sabe onde está a corda.

 

 

domingo, março 30

Entre a espada e a parede

 

Um português a viver no estrangeiro, o meu caso há sete décadas, confronta por vezes situações que tornam complicada a sua maneira de reagir, vendo-se em certos momentos posto entre a espada e a parede, noutras a hesitar entre a franqueza e o que pode ser tomado por estupidez, ou pior: falta de patriotismo.

Se já era assim uns vinte anos atrás, as circunstâncias vieram complicar-se com o desmesurado interesse dos estrangeiros afortunados quererem ter casa em Portugal. Isso porque, fora o poupar-lhes dinheiro, oferece também uma, hoje em dia muito rara possibilidade: a de poderem reviver a situação privilegiada de casta superior, tal como a que gozaram os seus avós na época colonial.

Infelizmente não há bela sem senão, e embora a passagem de dinheiro vivo entre mãos resolva muitas situações conflituosas, ou oposição de interesses, uma ou outra surge em que a parte – neste caso o estrangeiro – que se sente prejudicada, quer recorrer à lei.

Começa ele então por contactar um advogado, que as mais das vezes, se não todas, lhe será recomendado como muito capaz, mas também na posse daquelas relações que aceleram o que, para o comum dos mortais, demora eternidades a resolver.

Julgando-se em bom caminho, vê-se o ingénuo no começo de uma bizantina via dolorosa. Informa-o o advogado que a lei que ontem vigorava, já outra a substituiu. Que o funcionário que decide está de baixa por tempo indeterminado. Que...

Cabe-me então – português e amigo – tentar justificar a bizantinice de muitas das nossas leis e regulamentos, mas também o poderio concentrado nas mãos e nos bolsos dos advogados e funcionários públicos.

Estranho é que, em vez de agradecer os conselhos que tinham pedido, mostram má cara, discordam, acham que desdenho e critico a terra onde nasci.