terça-feira, novembro 11

Retrato

"Se o gajo é tão inteligente, porque é que não é rico?"

"Fosse ela esperta não era criada de servir."

Frases assim são retrato impiedoso de quem as pronuncia.

Petulância, estupidez, auto-satisfação, ignorância do mundo e da vida, desdém pelo semelhante, a barriga cheia de certezas. Tento esquecer, mas se as oiço ou leio lá se me vai em estilhaços a compreensão e o amor do próximo. E isso é o que eles por maldade ou descuido dizem em voz alta, mal iria se soubéssemos o que lhes vai na cabeça.

Sapiente foi Ele, que nos criou desiguais e mascarados, pois se nos fosse dado ler pensamentos há muito éramos espécie extinta.

 

segunda-feira, novembro 10

Entre fardas e fatos, o Diabo escolha

Ouvir-me dizer do resultado das próximas eleições presidenciais que tanto se me dá como se me deu, é porta aberta para os graciosos da piada fácil, pois com um pé na cova, seria de esperar ver-me mais ocupado com as perspectivas do Além, do que pelas consequências de um festival, várias vezes repetido ao longo de quase meio século, e cujos resultados só na aparência causam surpresa, pois vençam os da esquerda, da direita, do centro, de cima, de baixo ou do lado, e as fanfarras toquem marchas vitoriosas, quando o barulho acalma e a poeira assenta, repara-se então que foi para inglês ver.

Pode, eventualmente, dar-se uma mudança dos robertos encarregados do espectáculo, mas os cordelinhos continuam nas mãos que os manejam e de facto mandam, de forma que com eleições ou sem elas, não há razão para num futuro próximo esperar sérias mudanças ou reais melhorias.

Contudo, talvez não seja descabido assinalar, que se na essência pouco mudou, alguma esperança há: já não temos rei, somos uma república democrática, estamos longe do tempo em que Eça de Queirós vociferava  n’As Farpas que “as eleições fazem-se pela compra da consciência a dinheiro, ou pela promessa, pela lisonja, pelo dolo, pela mentira. Não há integridade nem limpeza de carácter que resista à influência degradante e sordidíssima da uma campanha eleitoral... A campanha eleitoral é uma navegação pestilencial pelo cano de esgoto de todas as imundícies da conveniência, do egoísmo e da ambição.”

Convenhamos, pois é facto: melhoraram as maneiras, as condições e o sistema, é menos agreste o vocabulário, embora isso não impeça o que é de sempre e de esperar: que os punhais continuem escondidos na manga à espera da boa ocasião, e se vigie o andamento do concorrente para que a rasteira não falhe. Assim tem sido como temos visto, ganhe  beltrano ou sicano não haverá mudança na paisagem.

Pode dar-se o caso de que o Chega, com a sua massa de “desprezíveis”, cause  um pequenino abalo, o que seria sem consequências de maior, pois os “democratas” sabem como proceder em situações dessas, jurando que todos os democratas são iguais, mas por vezes alguns calhem ser mais iguais dos que os outros. Demonstraram-no eles nas eleições de 2017 na Holanda, quando o PVV de Wilders foi o segundo partido, mas logo sujeito a um cordão sanitário, e por comum acordo dos “justos” banido de governar, relegando a uma segunda classe os 1.372.941 cidadãos que nele tinham votado.

Que isso tenha sido possível na Holanda, com uma tradição secular de democracia, não causou abalos só resmungos. De modo que milagre de Fátima, ou uma rebeldia das “massas” as leve a votar no Chega, dando-lhe também um improvável segundo lugar, nada mudará. Tanto mais que embora os dados pareçam ser lançados em público, o jogo faz-se de facto e sempre nos bastidores.

Teremos então muito do mesmo, e eu, cansado da monotonia e possuindo alguma experiência na escrita de romances, além de um razoável conhecimento da História pátria, não resisto à tentação de fingir de Bandarra e arriscar umas profecias do que pode vir a acontecer.

Começando pelos astros, e com suficiente margem para o rigor das datas, a impressão é a de que há um tempo para cá são interessantes as repetições. De 1910 a 1930 tivemos a gripe espanhola, gigantesca catástrofe; a implantação da República, um desastre; logo depois a tragédia da Grande Guerra, e quase em simultâneo o milagre do Sol em Fátima, seguido anos mais tarde pela chegada de Salazar, o salvador da Pátria.

Agora, desde o começo de 2020 temos o Covid-19 e as suas variantes, se bem que o número de mortos felizmente nem longe se compare ao da Pneumónica. Também é improvável uma mudança do regime, que aliás para ninguém seria bem-vinda. Uma guerra mundial pode vir a qualquer momento, se assim desejarem os que têm poder para a declarar. De modo que no aguardo de tempos mais serenos resta-nos a esperança de vermos repetir o milagre do Sol a rodar no alto, anunciando à Lusitânia a iminência da chegada do salvador providencial.

Que um candidato à função já por aí anda sussurram-no alguns, e até o próprio parece tomar gosto na fantasia. Embora a minha ideia não conte, e certo de que no Céu não me ouvem, quero todavia deixar dito que se mantém nula a minha simpatia por uniformes à frente dos destinos da pátria.

Essa nobre tarefa é mais avisadamente confiada a paisanos com algum traquejo na arte de governar, mesmo quando são malabaristas e certificados troca-tintas.

 

sábado, novembro 8

Viajantes

 

Viram mundo. Provam-no com relatos, fotografias, vídeos, por vezes até uma dúzia de linhas de gazeta. Viram mundo, viajaram muito, foram aos longes onde tudo é exótico, mas só defeito de nascença ou desarranjo da cabeça explicará tanta boçalidade.

Comentam o que viram com um entusiasmo que quer passar por original e é apenas um triste refogado. Conhecem gente. Mencionam datas, casos. Viveram tantas situações em simultâneo que se diria terem herdado a ubiquidade antonina. São simples. Arrepanhando os lábios ou de queixo descaído, sofrem da pedantice triste dos que papagueiam fiapos de conhecimento mal atado. Têm opiniões. Aborrecem. Viram mundo, mas ao ouvi-los pergunta-se a gente em que desertos se terão perdido.

 

quinta-feira, novembro 6

Saber da vida

 

Nesta época de gentileza e bondade, escreveu alguém a felicitar-me, afirmando que sei muito da vida.

Assim fosse, assim não é. A muita idade e as várias andanças, incluindo nestas um ou outro momento de euforia, os pontapés do Destino, os dos semelhantes, e os trambolhões que por descuido ou tolice se dão, nada ajudam a compreender da vida. Impedem que se repita um ou outro transtorno, mas a vida, feliz ou infelizmente, é caminho para o qual não há mapa nem bússola.

Vamos andando, paramos aqui e ali, derrapamos nas curvas, caímos na valeta, fazemos o possível por ir direitos e a direito. Depois, cansaço ou susto de ver a meta perto, abrandamos o passo, criando nos que ainda vêm longe a ilusão de que conseguimos chegar até ali por sabedoria e esperteza.

Na verdade, porém, não escolhemos a rota, nem sequer caminhamos pelo próprio pé. Somos empurrados. A uns leva-nos a aragem, a outros o suão, muitos  aproveitam o vento içando velas, os desatinados enfrentam o ciclone.

Saber da vida? Nem sequer sabemos donde vem o vento ou quem o sopra.