segunda-feira, maio 13

A memória sem ferrolho

Bom seria que existisse e houvesse à venda, um ferrolho para a memória. Tenho a absoluta certeza de que não discutiria o preço. É que para meu mal, além de que ainda não foi inventada semelhante geringonça, cabe-me a má sorte de, ao contrário do que dizem ser o que normalmente acontece na muita idade, a minha memória parece ter um refinado gozo em me mortificar, trazendo ao de cima a recordação de momentos desastrosos, passos em falso, misturando episódios da meninice com horas da vida adulta, enredos que ainda me fazem corar de vergonha. Sobretudo aqueles que, para poder esquecê-los, e fosse isso questão de dinheiro, de bom grado pagaria sem olhar ao preço, ou tivesse de me rebaixar para conseguir a cunha que me libertasse.

Para mal de todos, e de mim em particular, a memória desconhece transacções. Não é carrasco a quem se pague para finjir a tortura, nem funcionário corrupto que, a mão bem untada, sorri, pisca o olho e esquece a multa.

Prova não há, é suposição minha, mas dada a sobrenatural qualidade de como nela se misturam, confundem, agitam, trespassam e enrolam os infindos momentos de cada vida, tem a memória toda a aparência de ser instrumento de Satanás, já que – à cautela dou-lhe maiúscula – a  Ele se atribui a origem de quase tudo o que nos aflige e prejudica.

Convencido de que, tal como a muitos, a passagem dos anos faria diminuir a sobrecarga de recordações, vejo-me a braços com uma situação que outros talvez festejassem, mas a mim preocupa, tira o sono, põe azedo, dá ideia de praga rogada.

Infelizmente, a certeza que tenho da existência do Demónio não é compensada por uma crença em exorcismos, de modo que me encontro num beco sem saída ou, melhor dizendo: entre a espada e a parede, à espera do golpe de misericórdia.

 

quinta-feira, maio 9

O próximo

 

O próximo. Aquele que o geral das religiões manda que se lhe queira como a nós próprios, se lhe perdoe o mal que faz, o prejuízo que causa, o muito que incomoda. Que se use a esponja da misericórdia para lhe limpar o mau feitio, branquear-lhe a alma, esquecer o descaro com que, vez após vez, ele nos faz tropeçar, prejudica, dá palmadinhas nas costas ao mesmo tempo que prepara a rasteira, o golpe baixo, a intrujice.
É bico de obra querer seguir o mandamento e vermo-nos cara a cara com o pulha, pior ainda se é alguém que um dia mereceu amizade e respeito, mas caiu tão baixo na nossa consideração que ouvir-lhe o nome ou recordar-lhe as feições atrai a náusea.
Isto são pensamentos nada elevados, menos ainda pacíficos, para um começo do dia, mas a vida nem sempre tem lugar para atitudes nobres, altruísmos, perdões. Oferece a gente a outra face? Certo e seguro a bofetada não demora.


segunda-feira, maio 6

Graças ao Altíssimo

 

Para os que sabem ler, gostam de aprender, apreciam humor, inteligência e allure: agaffe está de volta. AQUI

 

domingo, maio 5

A mesa do canto

 

Na roda que há vidas fazemos no café, sempre a mesa do canto e longe da porta, as mais das vezes somos seis. Mais ano menos ano todos da mesma idade, excepto o Valentim, que se tudo correr como ele prevê, e cansativamente repete, será o primeiro a chegar aos cem.

Um estranho com menos anos, que por acaso ou curiosidade se nos viesse juntar, logo notaria a duração dos silêncios, a frequência dos resmungos, o tom azedo dos comentários e miudezas, mas sobretudo a quase ausência de saudosismo e suspiros sobre o antigamente, as coisas boas que definitivamente se perderam.

Não se vá, contudo, deduzir que esse comportamento é voluntário, pois uma vida de muitos anos, porque acarreta uma carga substancial de vivências, recordações, dores e alegrias, necessita por vezes, como diz o Fonseca, de um “tubo de escape” por onde saia o que vai cá dentro, evitando assim o que de mau pode acontecer.

Esse “tubo de escape” foi-nos negado de mau modo pelo Magalhães, na tarde em que estávamos a recordar a saudade que tínhamos dos aviões da nossa infância: ronceiros, com hélice, quatro asas, a voar tão baixo que se acenava adeus ao piloto. E daqueles Citroën Traction do comissário Maigret. Mais ainda das...

De facto é possível que já estivéssemos há um bom bocado nessa conversa do antigamente, o que nos surpreendeu foi que, ao contrário do que julgávamos conhecer do seu pensamento e maneiras, vimos o nosso camarada levantar-se agitado, fazendo voz grossa para avisar que se continuássemos com as merdices do “antigamente era melhor, ninguém precisa de tantas novidades, o telemóvel só é bom prós  putos...” e outras que tais, ele não nos ia negar a amizade, mas podíamos ter a certeza de que se viesse uma vez por mês seria o máximo, ou talvez mudasse para a mesa do Ginja, porque aí pelo menos era só política.