domingo, setembro 10
segunda-feira, setembro 4
As mentiras dos outros
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Em todas as amizades, mesmo nas boas e antigas, ocorrem por vezes momentos
em que uma observação inesperada ou uma ideia que fere a sensibilidade resultam
em frieza, e se não nos acautelamos começa aí a brecha por onde entra o
fingimento.
Connosco raramente é esse o caso, pois pela diferença de idade e o facto de
o conhecer desde miúdo, desempenho para ele o papel do pai que lhe faltou, e
nas ocasiões mais delicadas o de
benévolo padre confessor, pronto a compreender e perdoar.
As tontarias eram de pouca dura, só uma ou outra durava meses, ele logo a
esfalfar-se na conquista seguinte, certo de que desta vez seria finalmente o
grande amor. Nunca era. A mulher ia aguentando, fingia de cega, mas quando
recebeu a herança da madrinha no mesmo dia fez-lhe a mala, e que voltasse para
donde vinha, depois lhe diria quando podia levar o resto.
Foi isso vai em seis anos, e desde então nem vistos nem conhecidos, nunca mais
se falaram. Os filhos também não são o que se chama uma ponte, de modo que os laços familiares se tornaram tão frouxos
que hesita na idade dos netos, só tem a certeza de que são crescidos.
Estamos a terminar o almoço para que ele me convidou, a empregada traz-nos
o café, recuso o conhaque, e com alguma surpresa vejo-o a beber o seu com uma
pressa de alcoólico, vício que lhe desconheço.
Seca os lábios no guardanapo, abana umas quantas vezes a cabeça, depois
ainda aponta o copo, a pedir um segundo, mas arrepende-se e acena que não, a empregada
sorri.
- Então?- pergunto eu – Qual é o problema?
À medida que vai desfiando o relato noto nele uma certa decepção, talvez
porque esperasse ver-me mais interessado e mais do seu lado, em vez do modo
neutro com que disfarço a minha surpresa.
Acontece que Luísa, a ex, que ele nem de longe imaginava fosse dada às
letras, tinha escrito as suas memórias.
A obra terminada, pedira ao filho que lesse o manuscrito e este, assustado,
achou melhor mostrá-lo ao pai antes do texto ir para o editor. Conta ele agora
que leu, tomado de uma fúria assassina e mal se
podendo conter ao ver-se ali retratado.
Como não adianta rasgar as folhas - “a
grandessíssima p… tem tudo no computador” - que lhe diga agora o que há-de
fazer. E corrigindo: que faria eu se fosse comigo?
- Não fazia nada. Deixava andar.
- Mas ela só lá pôs mentiras!
- E daí?
Ontem mandou-me um mail com o endereço do seu blogue e um grito:
"Pus lá tudo! Vá ler!"
Não vou, não me interessa. Ele também só lá deve ter posto mentiras. As suas.
...Publicado na DOMINGO CM
segunda-feira, agosto 28
Aeroportos, estações e urgências
(Clique)
É um fascínio que
nasceu no começo da tarde de um domingo dos meus longínquos dezanove anos, em
que, jovem miliciano, aborrecido e triste de me ver obrigado a uma existência
que me desagradava, me deixei ficar a uma janela do Quartel da Graça, olhando
lá do alto para a cidade, ciente de que de imediato trocaria a minha vida por
qualquer uma das que enchiam as ruas, pois de certeza haveria nela mais
esperança e razões de optimismo do que na que eu levava.
Foi então que, achando-me
sombrio, o Barros, alfacinha de gema, vizinho de camarata e depois amigo para a
vida, sugeriu que em vez de estar ali a assombrar-me, esquecesse a tropa e
fosse com ele. Apanhávamos o autocarro, íamos à Portela ver os aviões, ver quem lá
estava, e beber uma cerveja.
Surpreendeu-me o
edifício, encimado por uma pequena torre de controle e, dada uma vista de olhos
à pista e ao único avião que ia levantar voo e me pareceu gigantesco, sentámo-nos
na varanda do bar, onde entre sujeitos engravatados, senhoras de chapéu e meninas
muito compostas, estariam talvez cem pessoas, atendidas por um pessoal exemplar na
sua postura e deferência.
Admirando aquilo
tudo, e com a sensação de ter descoberto um mundo, foi-se-me a melancolia.
Não é só por essa
recordação antiga, mas de facto gosto de aeroportos, e quanto maiores melhor. De Gaulle, Atlanta, Dubai,
Frankfurt, Schiphol, Heathrow, neles não me interessam os
aviões, sim a massa de gente, e nessa massa o grupo que se movimenta com os
ademanes de quem não está ali somente para viajar, mas parecendo tomar parte
numa misteriosa telenovela. Ele são os óculos escuros, o traje, os acessórios,
o ar entediado, o modo desprendido de empurrar o carrinho, de rir para o
telemóvel. Gosto mesmo. Tivesse eu tempo, ocasião, e não corresse o risco das
autoridades me tomarem por importuno ou vadio, passaria o tempo nos aeroportos,
certo de que me viria daí mais proveito do que andar pelas ruas em busca de
assunto para as minhas histórias. Tanto mais que esse povo é muito diferente da
multidão bisonha que se arrasta pelas estações à espera do comboio.
Agora devo talvez
desculpar-me para confessar que, além dos aeroportos, também sinto atracção
pelas urgências dos hospitais. Mas lá não é a pose, são os rostos que me
fascinam. Defronte daquelas expressões de medo e sofrimento, concluo as mais
vezes – erradamente, bem sei – que a humanidade é boa e pronta a arrepender-se.
Pena que o arrependimento seja sempre de pouca dura.
......
Publicado na DOMINGO CM