Raro surgem os pensamentos em sintonia com a quadra, pelo que esta manhã, em vez de fazer balanços do ano que passa e sonhar coisas boas para o que entra, dei uma volta pela blogosfera.
Muita beleza feminina nua e semi-nua há por ali! Terabytes dela, que neste particular, dizer às carradas, além de expressão arcaica nada indicaria da excessiva quantidade. Mas assim seja. Divirtam-se, alegrem-se, excitem-se, sonhem acordados e a dormir.
O voto que faço é que todo esse mostruário não resulte de desespero, desilusão ou, pior, de momentos como o que Charles Aznavour canta em Tu t' laisses aller. E porque a vida a dois sempre será um exercício na corda bamba, exigindo dos parceiros apurado sentido de equilíbrio, passada a adolescência é brincar com fogo o querer sobrepor a ilusão à realidade doméstica. Cuidado, pois, que essa pólvora facilmente explode.
Lotte Verbeek (29), a actriz holandesa que contracena com Jeremy Irons no papel de Giulia Farnese em The Borgias, disse há dias numa entrevista que de momento não tem namorado e, terminando as filmagens dessa série, que decorrem na Hungria, irá durante um mês percorrer a Tailândia, de mochila às costas e sozinha.
Imagine-se jovem e aventureiro, a encontrá-la por acaso num bar em Banguecoque, irem dali para Pattaya ou Phuket.
Esqueça as garotas do Photoshop. No ano que entra, e depois, dê preferência às de carne e osso.
sábado, dezembro 31
sexta-feira, dezembro 30
Mark Rutte
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O semanário Elsevier escolheu o primeiro-ministro Mark Rutte (44) como "Holandês do Ano".Em funções desde Outubro de 2010, tem dado boa conta do recado, trouxe o que se chama uma lufada de ar fresco aos mores políticos, mesmo os seus adversários lhe reconhecem as qualidades.
Contudo, a razão porque aparece aqui nada tem a ver com simpatia, ou apreço pelas suas qualidades de estadista, sim com certa atitude e um modo pouco corrente de estar na sociedade.
Há anos que Mark Rutte, voluntariamente, dá às quintas-feiras duas horas de aula de Ciências Sociais num secundário de Haia. A sua nomeação para chefe do governo não alterou essa rotina e, para surpresa de muitos, mesmo se volta de uma conferência em Bruxelas às três da madrugada, o que é frequente, das oito às dez da manhã não falta à aula.
Fosse eu dado a elogios, poderia isto cheirar a hagiografia, felizmente não conheço o homem nem a sua política me encanta. Quis apontar, sim, uma diferença de mentalidade, se bem que de modo algum espere ver muitos estadistas a trocar, por uma modesta docência, as horas prazenteiras dos almoços e jantares de confraternização.
quarta-feira, dezembro 28
Perturbação
Que uns se tenham abismado, o tenham lido de uma só vez, que este o devorou e aquela sinta pena de não ser mais grosso o volume, eu sinceramente acredito nesses entusiasmos. Depois há o galardão do Booker Prize , e serei o último a duvidar da competência dos que o atribuem. Junte-se a isso a antiga, e ainda presente, admiração que me merece o autor de Flaubert's Parrot.
Assim me fui à leitura de The Sense of an Ending, e passado umas quatro horas tinha chegado à última frase das 150 páginas: "There is great unrest".
Em grande perturbação fiquei eu, porque não descobri o que tantos outros acham motivo de enlevo. E vendo-me sozinho no meu juízo, resta-me concluir que já não leio como se deve ler, e a idade me tornou míope para aquilo que aos mais parece um superior relato dos arcanos da alma e das tragédias da existência.
terça-feira, dezembro 27
Saber da vida
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Nesta época de gentileza e bondade, escreveu alguém a felicitar-me, afirmando que sei muito da vida.
Assim fosse, assim não é. A muita idade e as várias andanças, incluindo nestas um ou outro momento de euforia, os pontapés do Destino, os dos semelhantes, e os trambolhões que por descuido ou tolice se dão, nada ajudam a compreender da vida. Impedem que se repita um ou outro transtorno, mas a vida, feliz ou infelizmente, é caminho para o qual não há mapa nem bússola.
Vamos andando, paramos aqui e ali, derrapamos nas curvas, caímos na valeta, fazemos o possível por ir direitos e a direito. Depois, cansaço ou susto de ver a meta perto, abrandamos o passo, criando nos que ainda vêm longe a ilusão de que conseguimos chegar até ali por sabedoria e esperteza.
Na verdade, porém, não escolhemos a rota, nem sequer caminhamos pelo próprio pé. Somos empurrados. A uns leva-nos a aragem, a outros o suão, muitos aproveitam o vento içando velas, os desatinados enfrentam o ciclone.
Saber da vida? Nem sequer sabemos donde vem o vento ou quem o sopra.
segunda-feira, dezembro 26
A Terra
A semana passada houve aqui alguma agitação, pois pela segunda vez foi "disparado" da Rússia para a International Space Station o astronauta André Kuypers, que por lá vai ficar um longo meio ano.
Tivemos então uma sobredose de imagens de foguetões, cápsulas, ausência da gravidade e, o que sempre me aflige, a vista do nosso planeta a boiar na escuridão, minúsculo e solitário. Aflige-me e desgosta.
Quero de volta o mundo em que fui criado. Dispenso informações, deixem de repisar que giramos a 1.675 km/h (será?). Quero a Terra em que havia longes, monstros marinhos, índios selvagens, reis e rainhas de verdade, fadas, bruxas, a Branca de Neve e os anões em quem eu mandava. Estou farto da ideia que me dá a televisão, de que me encontro nas alturas e, como se espreitasse de uma janela, distingo lá longe a pequenina, azulada, frágil bola onde nos apinhamos.
Quero de volta o mundo em que fui criado. Dispenso informações, deixem de repisar que giramos a 1.675 km/h (será?). Quero a Terra em que havia longes, monstros marinhos, índios selvagens, reis e rainhas de verdade, fadas, bruxas, a Branca de Neve e os anões em quem eu mandava. Estou farto da ideia que me dá a televisão, de que me encontro nas alturas e, como se espreitasse de uma janela, distingo lá longe a pequenina, azulada, frágil bola onde nos apinhamos.
Distingo, mas custa a acreditar. Por isso me agradam aqueles sábios árabes que um dia apresentarão provas irrefutáveis de que a Terra é plana e imensa. Então, sim, então ficarei sossegado, e direi com eles que o que nos mostram são americanices que nos mantêm submissos e assustados.
sábado, dezembro 24
Boas-Festas
Mandei postais e mails, juntei abraços, xi-corações, beijos, beijinhos grandes, votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo, saudades, umas quantas palavras de sentida simpatia. Cumpri o hábito, o ritual, e em vez do sentimento de satisfação cai sobre mim uma névoa de melancolia
Logo à noite a nossa consoada vai ser feliz, harmoniosa, a família inteira à mesa (só já somos nove), mas neste começo do dia ensombra-me a memória de Natais tristes, pesados de infortúnio e desespero. Tento, mas não consigo, afastar de mim o pensamento dos que não vão ter Natal, nem consoada, e se sentem abandonados num mundo em que para os outros tudo é festa.
De nada adianta, bem sei, mas quanto mais seguro é o meu conforto, mais consciência tenho da dor alheia e me aflige a injustiça.
sexta-feira, dezembro 23
Ilha dos Bem-Aventurados
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As ilhas de Brissago. Duas pequenas ilhas na parte suíça do Lago Maggiore que os guias referem de vegetação luxuriante, bichinhos e plantas vivendo ali como mandou o Senhor, antes de criar Adão. O que os guias esquecem é que, nos fins do séc. XIX e começo do seguinte, já na ilha maior, a de San Pancrazio, havia o Paraíso. Era propriedade de um comerciante de Hamburgo, de seu nome Max Emden, e merecia o título que lhe davam de Insel der Selingen (Ilha dos Bem-Aventurados), pois deixaram fama as orgias que nela se realizavam.
Por lá passou também James Joyce, se bem que, mau grado o final do seu Ulysses – "… and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes" – mas conhecendo o feitio do homem, é provável que tenha sido apenas espectador.
A fotografia, tirada no local, é de 1937.
quarta-feira, dezembro 21
Sal na ferida
Precoce na leitura, cedo comecei a sonhar e a ter pena do meu país. Aprendi que lá longe havia outros sem medo nem miséria, de leis justas, menos desigualdade, menos desespero, os seus cidadãos e governantes mais interessados no futuro do que em glórias passadas.
Parti, quando a minha hora soou. Ingénuo bastante para me maravilhar, mas cedo consciente do fosso entre a realidade que observava e os sonhos que tivera. Além fronteiras não havia paraísos, mas sociedades onde a esperança de melhoria era um facto, a desigualdade menos gritante, a repressão inexistente, a liberdade um direito sagrado. Fui vendo, estudando, comparando, e continuei a ter pena da terra onde nasci.
Não me entusiasmou depois o florescer dos cravos, e espero o investigador de hombridade que faça a barrela desse momento histórico, mostre os interesses que a ele levaram, ponha nome nos fantoches e em quem segurava os cordéis.
Passaram os anos. Sentindo mais funda a pena, vi o meu país de mão estendida. Com espanto vi-o depois a esbanjar o que não tinha, governantes e governados dando o espectáculo da mais incrível pelintrice, de uma inconsciência que só dos pobres de espírito se espera, tomando por realidade o país de Cocagne.
Vivendo no conforto de uma sociedade rica, justa, bem organizada, materialmente não sofro com a desgraça daquela em que nasci, mas nem por isso me dói menos o esfregar sal na ferida.
Curioso povo, o meu, onde gente supostamente séria e competente enrouquece a gritar que as dívidas dos países não se pagam. Para que fingem? Com que fim iludem? Pagam, e com língua de palmo, que quem dita os termos não é o caloteiro, mas aquele que tem numa mão a faca e o queijo, e na outra a corda com que o enforca.
Com tristeza o digo e consolo não sinto: na minha idade é nula a esperança que tenho de ver Portugal sair do atoleiro e da miséria. Resta-me o sonho de que os que agora são jovens, e os que vierem, construam um país de que se possam orgulhar e não lhes doa como este a mim dói.
terça-feira, dezembro 20
Lavinia Meijer
Nasceu na Coreia do Sul em 1983, foi adoptada por pais holandeses, aos onze anos entrou no Conservatório de Utrecht, em 2005 diplomou-se cum laude no de Amsterdam. Já tocou no Carnegie Hall. Oiça-a aqui, e mesmo que não aprecie a harpa, retenha o nome, porque esta menina vai longe.
sábado, dezembro 17
Jean Harlow
(1911-1937)
É hotel em que há quase duas décadas pernoito pelo menos quatro vezes por ano, e a chegada acompanha-se sempre de suspense. Estará? Não estará? Se for sexta-feira provavelmente está, nos mais dias é questão de roleta.
Com o tempo deixou de ser choque, mas mantém-se a surpresa. Os franceses diriam dela que é petite, pois mesmo com tacões agulha mal passará do metro e meio, mas vê-se e mal se crê, obriga-se o hóspede a fingir que não repara numa perfeição que se espera em estátua de excepcional feitura, mas deixa de boca aberta o encontrá-la de carne e osso.
A opinião logo da primeria vez foi consensual: JeanHarlow! Mas Jean Harlow do séc. XXI, uma extraordinária síntese da beleza dos anos da minha meninice, do que foi e há muito não é, com a desenvoltura e o à-vontade do tempo de agora.
Sorri na recepção. À outra chamavam The Blonde Bomshell, esta é simplesmente Jean Harlow.
quinta-feira, dezembro 15
Há correio?
Entre as surpresas, muitas, e uma ou outra alegria que a Holanda me causou quando em Março de 1956 lá cheguei, recordo a distribuição do correio.
De manhã, ao meio do dia, ao fim da tarde! Viciado em correspondência, como desde a adolescência era, apreciei a sobredose, pareceu-me aquilo também um sinal de civilização. Com o passar dos anos o carteiro viria duas vezes, mais tarde só uma, a Radio Nederland anunciava esta madrugada que deixará de haver correio à segunda-feira.
Medida acertada, pois raras se tornaram as cartas. A última que recebi data de Outubro, há mais de um ano que não pego em pena e papel para caligrafar palavras de cortesia ou amizade. Com o desuso estragou-se-me a letra. Depois o fax e agora o e-mail desabituaram-me da epistolografia, além de que tenho a impressão que, neste tempo de pressas e instantaneidade, o destinatário desataria a rir com uma missiva onde lesse a abertura clássica: "Estimamos que ao receberdes esta estejais de perfeita saúde. Nós, graças a Deus vamos bem."
Mas confesso que por vezes tenho saudade daquela excitação de abrir o envelope, desdobrar a folha, dar uma rápida vista de olhos ao conteúdo, saborear com demora as palavras de amizade, e responder de imediato, como se estivéssemos em conversa.
quarta-feira, dezembro 14
Sangue nobre
São família de muitos irmãos, muitos tios, primos às dezenas, dizem por vezes a brincar que com eles se fazia um regimento. Provavelmente não chegariam, se bem que juntando os parentes em segundo grau, de certeza se formava um batalhão.
Gente humilde, boa, trabalhadeira, exemplar nas virtudes antigas da seriedade, agradável e simpática no trato. Mas então não é que, pelas minhocas criadas na cabeça de uma prima a viver para os lados de Perpignan, foram como que atacados de loucura colectiva?
Procurando aqui, colando além, fazendo dos enganos certezas, inventando onde dava jeito, concluiu ela, e fez saber, que a humildade da origem comum era fábula. Não seriam primos dos Braganças, mas nos idos de mil setecentos e tantos descobrira nos anais a existência e o nome de um fidalgo que, pela acção conjunta do álcool, do jogo, da preguiça e da putaria, caíra na miséria.
Desse infeliz descendem, mas agora, ordenou a prima, têm obrigação de dizer quem são, donde vêm, que os gerou sangue nobre. E eles dizem-no, repetem incansáveis a genealogia, deixaram de votar socialista.
terça-feira, dezembro 13
Vitórias
Podiam ser uma firma, porque fazem um bocado de construção, de carpintaria, de canos e retretes, desentopem isto, endireitam aquilo, sabem de telhados. Parecem uma empresa, mas são um bando, e assim procedem, com a bruteza arrogante de quem não aprendeu a arte, só tem algum jeito e aquele modo do zarolho em terra de cegos.
Mas como mesmo nos confins o mercado tem as suas leis, quando se trata de arranjar biscate ou empreitada o bando verga-se nos salamaleques, mostra-se compincha, sorri, é todo acomodações, facilidades, promessas.
Uma vez apalavrado o serviço, cai a máscara. Acautele-se o mandante antes que se lhe despenhe algum caibro na cabeça, não venha ele com queixas de obra mal feita ou sugestões de boa razão, porque aí, antes de passar às ameaças, dispara-lhe o bando uma artilharia de “merdas” e “caralhos”.
Na taberna, à noite, encharcados de vinho e igualdade social, dão murros no balcão, rememoram vitórias, não se cansam de repetir que "pensem eles o que pensarem, hoje quem manda é o povo, somos nós!"
domingo, dezembro 11
Tenebrosas forças
Em minha opinião, as tenebrosas forças que em tudo mandam, tudo vêem e escutam, possuem também a ubiquidade de Santo António. Tal como o santo voou de Pádua para Lisboa, a salvar o pai da forca, assim demonstram elas subitamente o seu poderio.
Um exemplo: estava eu ontem em alegre convívio com uma bem disposta assistência na Biblioteca Almeida Garrett, quando no calor da falação comecei a elaborar sobre a fausta, por todos admirada Revolução dos Cravos. Mencionando a CIA e o facto da esquadra americana que, fundeada no Tejo, saíra para o mar umas horas antes dos heróicos militares salvarem a Pátria, então não é que de repente as luzes se apagam, fica o edifício em trevas, não há luz na vizinhança, e nos vemos ali encurralados e a tremer?
Para susto bastou. Agradeço sim, muito sinceramente, aos que estiveram presentes e lá chegaram sob uma chuva de Dilúvio, originada, aliás, pelos mesmos poderes, que também mandam nas nuvens, conhecem as minhas antipatias, e sabiam já do que iria tratar.
Não prometo melhoras, mas quando ouvirem dizer que vou falar nalgum sítio, o melhor é não aparecerem. Deste vez foi só chuva e o corte da luz, mas na próxima ninguém sabe.
sexta-feira, dezembro 9
Reputações
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Há reputações em que se recomenda não mexer. São exemplos correntes o génio político de Mário Soares, o heroísmo dos Capitães de Abril, a mundialidade do Fado, o sabor das cerejas de Alfândega da Fé (usadas nos bombons Mon Chéri), o génio de Sá Carneiro, as sardinhas da Afurada, a qualidade dos Toyota, o Alvarinho, o São João das Fontainhas, e assim por diante.
Aqui no Nordeste transmontano temos, entre as mais salientes, a reputação de Trindade Coelho. Há quem se lhe refira como "grande vulto das nossas Letras" e soletre o título In Illo Tempore com o recolhimento que os padres usam no Latim da missa.
Admira você Trindade Coelho? Acha-o, como agora é usança dizer, um nome incontornável da literatura pátria? Sabe de cor páginas de Os Meus Amores?
Serei o último a apoucar o seu gosto e simpatia, mas acontece que, por mais que me esforce – li compassadamente os três volumes da obra do mogadourense – chego sempre à conclusão de que aquilo nem sequer o classifica como um minor master, qualificativo que os cínicos ingleses dão aos autores que de facto não se apreciam, mas por razões várias se têm de elogiar.
Isto dito, com surpresa descobri a maroteira que fizeram os meus confrades da Confraria Queirosiana, pondo-me nas mãos do ilustre transmontano. Nota-se que com uma segura a folha e com a outra se apresta a rasgá-la.
Se quando no outro mundo nos encontrarmos ele ameace passar a vias de facto, não estranharei, em certas reputações é melhor não mexer.
Se quando no outro mundo nos encontrarmos ele ameace passar a vias de facto, não estranharei, em certas reputações é melhor não mexer.
quinta-feira, dezembro 8
Parolices
Por andanças da vida e no decurso de quase três décadas, ora foi diminuto ora quase inexistente o meu uso activo da língua portuguesa falada. Livros e jornais são insuficientes para acompanhar a sua evolução, e as conversas espaçadas podem alertar para um atraso, uma diferença, mas pouco ajudam a preencher as lacunas causadas pelo afastamento e o desuso.
Nasceu-me daí uma espécie de alergia a certos modernismos e brasileirismos importados com as telenovelas; incomodam-me os galicismos pedantes dos especialistas que só com eles conseguem falar das Letras e das Artes; posso mal com o jargão autárquico e parlamentar; aflige-me que vizinha analfabeta já não diga que toma remédios, mas que está com medicação.
A língua portuguesa seguirá o caminho que, com acordos ou discordando, lhe preparam os seus falantes e escritores. Esta minha birra é coisa pessoal, anota apenas uma espécie de desânimo causado pelo desfasamento de que falei, e talvez também por diferenças de sensibilidade. Mas não há jeito a dar-lhe, mesmo sem razão continuarei embirrento.
Deve ter sido nos anos oitenta que pela primeira vez ouvi a palavra plantel aplicada ao futebol. Assustei-me. Vinha do espanhol, eu só conhecia o significado original da palavra argentina que davam os dicionários: "grupo de animais de boa qualidade reservados para reprodução". Vertente assim e desafio assado, apostas, desalavancagens, roupa vintage, produtos gourmet (por onde andarão as iguarias?). Passam por aqui citadinos a falar de ruralidade, sustentabilidade, alteridade geracional e workshops para idosos. Ninguém ri.
Ri eu, tempos atrás e com boa razão, ao visitar nesta santa pátria, onde não é só a língua que anda aos trambolhões, um Spa & Resort. Aí, num ambiente de desusado luxo, uma massagista de tacões agulha e generoso decote, fazia uma demonstração da sua técnica nos lombos de um autarca.
quarta-feira, dezembro 7
No Arco de Baúlhe
É de poucas falas. Raro se lhe ouve comentar o tempo ou a política, se diz alguma coisa é para falar da quintazita que tem para os lados do Arco de Baúlhe, e dos problemas com o rendeiro, Sebastião de nome, por alcunha o "Trompete". Camaradas na Guiné, quis ajudá-lo, mas depois do 25 de Abril veio com mandonices, o que tinha sido amizade azedou, desde esse tempo são cão e gato.
- A Rosalinda bem diz que feche os olhos, deixe passar, pense no coração. Mas custa muito, sabe. Poucos aguentariam.
Por serem as queixas contra o "Trompete" o tema favorito, surpreendeu-me a semana passada o não aludir ao caseiro, mas entrar em considerações filosóficas sobre a vida a dois, o delicado equilíbrio que isso requer, os desentendimentos que começam por um nada e destroem a paz doméstica.
- Em Janeiro vou fazer sessenta.
Olhou-me, talvez à espera de comentário, mas receando dar passo em falso respondi com as banalidades da saúde, da boa aparência, que ninguém lhe daria a idade.
- Para ser franco, nunca me senti tão bem.
E de súbito, como se eu tivesse podido ler-lhe os pensamentos, resmungou que era esse o problema.
- Como?
- É mulher com cabeça, vê a televisão, os programas todos. E tem as revistas, fala com as amigas! Isto já não é o antigamente, que diabo!
Dando-se conta pelo meu modo de que não estava a compreendê-lo, segredou-me o que Rosalinda na cama lhe recusa.
- Não pode ser, pois não? Então para que é que a gente se casa?
Cada um tem as suas aberrações, sonhos e desejos, mas naquela idade, com aquele corpo, custa-me imaginar Dona Rosalinda, vestida como ele quer a fazer o que ele pede.
terça-feira, dezembro 6
O nosso temperamento
É sobre a segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, o passo que leio na História de Portugal, de Oliveira Martins. A incrível crueldade do fidalgo que, por se ter sentido humilhado pelo Samorim, deixa atrás de si horror e destruição, comportando-se como o mais tenebroso dos selvagens.
Vieram depois outros de menos nome, mas nada lhe ficam a dever em desumanidade, e na nossa História, para só falar destes, deixam razão de sobra para vergonha a perseguição dos judeus, as lutas entre Liberais e Miguelistas, a proclamação da República, a Guerra Colonial.
Tudo isso é mais que sabido, só vem aqui ao caso devido a uma frase do historiador que, nos últimos dias, por razões várias, me leva a pensamentos que preferiria não ter.
Escreve Oliveira Martins: "A história da viagem (de Vasco da Gama) é um horror; e a desforra do capitão uma prova dessa frieza sanguinária, impassível e cruel, que efectivamente existe no temperamento, quase africano, do português".
Dispenso a televisão e o Correio da Manhã, basta-me por vezes olhar em volta.
segunda-feira, dezembro 5
De Março a Setembro
Lembram-se daqueles dias do fim de Março passado, luminosos, calor brando, uma doçura a acariciar a pele, céu de cristal?
Uso as palavras dela. Sentados lado a lado, oiço-a silencioso, imóvel. Surpreso pelo inesperado da confidência e com algum incómodo, a atenção que mostro não corresponde à frieza do meu juízo. Mais tarde abrandarei, vou encontrar frases e gestos de carinho, será sincero o modo como a abraço e lhe beijo a face. De momento, porém, é bom que não me encare nem leia o pensamento.
Fim da tarde de sexta-feira, 25 de Março, 2011. Questão de memento, para ela esta exactidão é importante, importantes também os detalhes, a maneira como se adiantou a deixar o trabalho, a impaciência no táxi, os degraus que na praia desceu a correr, a pressa de enfiar o biquíni, a toalha, a garrafa de água, os óculos escuros, o receio de ter esquecido o mp3, Amy Winehouse.
Estendeu-se na areia, perdida na música. Bela mulher de trinta e quatro anos, imagina o que ainda pode acontecer, recorda as aventuras que começou cedo na adolescência, os amores, o deslumbramento da paixão com o sueco que a fez mãe, e um domingo, dois anos atrás, sem prenúncio nem aviso, lhe disse que era o fim, deixando-a mais perplexa que magoada, a perguntar-se que mal teria feito.
Confessa que sonha em demasia, mas tem uma esperança infinda, certezas absolutas, já lhe aconteceram milagres. Como agora. Fazendo propositadamente sombra, ele obriga-a a abrir os olhos e, directo, de uma franqueza desarmante, diz que precisa de companhia, tem a certeza de que o não irá enxotar.
Riem, falam, irão tomar café, no dia seguinte vão ao cinema. Na noite de sábado, 2 de Abril, foram para a cama. Carinhos, carícias, doçuras sem fim. As razões de não haver sexo, nem ela compreendeu nem ele explicou, mas a partir daí foi um paraíso, os fins-de-semana uma festa. O sexo viria no momento apropriado. Seria uma questão religiosa, impotência, quem sabe se pejo de confessar um defeito, uma incapacidade? Amavam-se de verdade, e fundo, o que importava.
Volta-se, como que a certificar-se que a ouvi e acredito, mas logo deixa de me encarar, a voz um sussurro.
18 de Setembro, domingo, ao fim da tarde, ele vai-se despedir. Abraça-a. Afasta-a depois, mas continua a segurar-lhe os braços e de repente diz que nunca se voltarão a ver, não quer fazer da vida dela uma tragédia, é melhor terminar.
- Será este o meu destino?
Respondo-lhe que não, mas daqui a um tempo será outra vez na praia ou num café, numa esplanada, no cinema.