sexta-feira, março 31

A caixa de velocidades

Estamos de volta às berças. Berças? - palavra morta.

Diz o Vicente, e provavelmente assim é, estamos muitas vezes a contar casos alheios, quando no íntimo falamos de nós próprios, na esperança de garantirmos, se não a paz de espírito, pelo menos uma fatia razoável da paz doméstica, e desse modo manter o statu quo dos primeiros tempos do matrimónio, quando tudo eram festinhas, arroubos, certezas de amanhãs radiantes de “salud, dinero y amor”.

A citação fá-la ele de propósito na língua de Guadalupe, a madrilena com quem festejou em Lisboa a passagem do século, e tão presta lhe lhe tinha deitado o anzol que um mês depois estavam de casa e pucarinho, antes do ano findar tinham dado o nó, eram pais da Juanita.

Também do Vicente, muitas vezes repetida em conversas porque a acham original, e lhe valeu a fama de “rapaz com “boa cabeça”,  é a sugestão que um dia fez, de que a vida em sociedade se tornaria mais simples, e as relações entre as pessoas mais agradáveis, se para as simpatias e amizades se pudesse instalar uma espécie de caixa de velocidades.
Engatava-se-lhe a primeira e continuava-se devagarinho enquanto o convívio se mantivesse agradável. No caso de começarem a aparecer muitas curvas, subia-se para a terceira. Mostrava-se agradável? Então metia-se-lhe a quinta. Aborrecia? Punha-se no ponto morto.
Infelizmente, mal grado a simpatia que o modo do Vicente ocasiona,  os sentimentos não possuem a rigidez da mecânica. E assim sendo, no que respeita amizades transtorna dar-me conta que oferecer o dedo, às vezes implica o risco de me ver sem braço. Desnorteia-me que da mostra de simples simpatia resulte um perigo de anexação sentimental. Entro em pânico quando, todo sorrisos, amigo velho ou conhecido de fresca data, me vem com conselhos e sugestões. Caixa de velocidades com um amplo ponto morto! Soubesse eu onde encontrar uma!