domingo, outubro 23

Morrer duas vezes

 

Além de conhecimento da vida, das regras da gramática, e alguma capacidade de dar à mentira um cheiro de verdade, escrever ficção é arte ao alcance de muitos. Outro galo canta se se trata de relatar um caso, não somente acontecido, mas que por razões várias nos tocou de perto, envolveu gente que conhecemos e deixa um peso na consciência, como se duma maneira ou doutra tivéssemos podido evitar o que aconteceu

A história é real, trágica, talvez por isso embaraça o resumi-la numas poucas linhas, como se assim se lhe diminuisse a compaixão que merece.
Casou ainda rapaz, deixou a mulher na aldeia e emigrou para a Alemanha. Dezenas de anos viveu lá em solidão. À custa de privações e sacrifícios, trabalhando de dia na fábrica e à noite de porteiro num prédio, conseguiu poupar uma pequena fortuna, garantia de um futuro de vida folgada, paz de espírito e descanso do corpo.
Quando vinha de férias invejavam-no, mas também o admiravam, pois nenhum deles tinha um Mercedes assim, nem conseguira construir casa tão grande.
Boa companheira, a mulher trazia tudo num brinco, e por ter instrução era ela quem tratava com o banco e se encarregava da papelada.
Chegou o dia do regresso definitivo. Partiu da Alemanha com a euforia de ter alcançado o que queria, mas sem saudades, porque não tinha feito amigos, nem ninguém sente pena de deixar o degredo.
Na aldeia receberam-no com festa. No dia seguinte, contente como uma criança, perguntou à mulher quanto dinheiro tinham, e ela, desvairada, confessou ter perdido tudo no jogo. Nem a casa lhes pertencia, porque a tinha hipotecado.
Cego de raiva, matou-a. No julgamento ouviu que lhe dera mais de cinquenta golpes com uma tesoura, mas de nada se recordava porque, como em lágrimas disse ao juiz que o condenou a vinte anos de prisão, nessa altura também já tinha morrido.