quinta-feira, maio 19

Sargento Getúlio

Entre Julho e Agosto de 1996 escrevi no jornal neerlandês "de Volkskrant" uma série de cartas a personagens literárias. Esta para Sargento Getúlio, o romance de João Ubaldo Ribeiro, já foi publicada aqui em Setembro de 2007.

Prezado sargento Getúlio,

Que me lembre, poucas vezes ao começar uma carta terei ressentido um tão singular desencontro de sentimentos como o que me toma ao escrever esta.
Em primeiro lugar, porque não sei bem se o modo que uso em epígrafe é o mais adequado para me dirigir a si. Sê-lo-ia, certamente, para com um dos sargentos pouco militaristas de agora, desses que foram à escola e possuem uma noção democrática do respeito que se deve às pessoas e às instituições.
No seu caso, creio que não. Sargento da Polícia Militar Brasileira nos anos 50, analfabeto ou quase, autoritário até à loucura, você tem sobre o respeito ideias tão suas que, embora pareça absurdo, elas se tornam simultanea­mente ridículas e universais, humanas e perigosas. Num momento provocam a minha ira, mas por um estranho poder de corrupção, logo a seguir me sinto obrigado a conceder que me parecem razoáveis.
Acontece também que nunca escrevi a um morto, o que faz acompanhar o acto de uma curiosa sensação de irrealidade. Isso, contudo, não evita que noutra parte do meu ser, aquela em que existo sem as peias do espaço e do tempo, você tenha adquirido a qualidade de figura eterna e ponto de referência. Não que lhe inveje a crueldade de lentamente esfolar vivo um inimigo, de gozar ao fazer com que outro vomite os próprios intestinos, ou ao abrir à faca o ventre duma mulher grávida.
Tãopouco posso apreciar o modo cego como você acata ordens, menos ainda a agudez animal de, em tudo e todos, procurar o ponto fraco para depois, sem dó nem perdão, pensar apenas em destruir.

Todavia, nas horas escuras em que o impossível deixa de existir e o espírito anseia por liberdade total, tenho-me surpreendido a imaginar que talvez não desgostasse de viver uma vida linear como a sua, em vez de me ver submetido aos solavancos e à confusão do meu dia-a-dia. Porque o que sobretudo em si me fascina é a aceitação da existência sem regras, limitada a um único bem, o cumprimento da ordem, e reconhecendo somente um único mal, a desobediência à ordem. O resto: crueldade, medo, fome, dor, sofrimento, desaparece esmagado entre esses dois pilares que, no seu ver, com terrífica simplicidade delimitam tudo.
Você prova o que eu preferiria não ver provado: que a vida pode ser vivida sem moral, sem beleza, sem amor. Que todos os entusiasmos são fúteis, a alegria indecorosa, o carinho um acto mecânico.
Felizmente, a minha sensibilidade e a consciência - ou serão apenas as minhas limitações? - levam a melhor e, passado o desvario, retomo o que julgo ser a paz que me permite ir existindo. Só que essa paz dura pouco. Tendo conseguido semear em mim a desconfiança, no final é você quem vence. Cruel e assassino, indiferente ao sentimento próprio ou alheio, maníaco com apenas uma ideia, avesso a tudo o que seja mudança, mesmo assim qualquer coisa em si toca o religioso, algo de inefável, de puro. Algo que se apercebe ainda menos que o ligeiro toque da brisa, e contudo se ressente forte como uma presença sólida, uma certeza.
Muitos dos bons sentimentos que a você faltam, conheço-os eu de nascença, e quase tudo o que você é, representa, o que faz e o que sente, é para mim odioso. Porém, e esse será o mistério da admiração que você me causa, e até certo ponto o da minha inveja: enquanto eu nunca torturei nem matei, tenho a certeza que no dia em que comparecermos no Julgamento Final, Deus fará para o meu lado um gesto de demissão, e o acolherá a si com um sorriso de ternura.
Porque só Ele sabe as razões que O levam a escolher a um para Seu instrumento do Mal, e a atirar a outro para a anonimidade da massa que, respeitosa da moral por temor ao castigo, cobardemente se conforma.