domingo, dezembro 20

Na solidão é cara ou coroa

A solidão tem mil maneiras para atacar. Chega por vezes na forma benigna de umas horas nos sentirmos sozinhos; é pior quando começa de madrugada, tornando tudo de mau agouro; surpreende-nos estando num grupo e de súbito tudo se esfuma, sentimo-nos isolados, as vozes dos outros tornam-se um eco distante.

Solteirão, homem de regras e disciplina, meticuloso até ao exagero, o Emílio vive com a satisfação de que, fora os imprevistos do Destino, tem tudo organizado de modo a que quando chegar a altura gozar a velhice em segurança e conforto.

Nunca foi de insónias, desde que se lembra acorda às seis, tratada a higiene atende ao "Lambareiro", o quarto gato na sua vida e todos assim baptizados, feito isso prepara o pequeno-almoço, que há muito quer à inglesa, com salsichas, ovos estrelados, fiambre, queijo e torradas, por ter lido ser essa a maneira mais saudável de começar o dia.

Confortado, arruma a loiça, limpa a mesa, prepara uma segunda xícara de café, tira então do bolso a moeda de ouro antiga que o avô lhe deu quando era miúdo, pensa em duas coisas que gostaria que lhe acontecessem durante o dia e escolhe então qual será cara ou coroa.

Apertou a moeda entre os dedos, mas ao vê-la girar o "Lambareiro" deu-lhe com a pata e fê-la cair no soalho. Sorriu daquilo, levantou-se, mas para sua surpresa e aborrecimento por mais que procurasse não a encontrava. Ora se a cozinha era grande e no soalho quase centenário havia bastantes frinchas, uma moeda de ouro sempre reluz, mas já lhe doíam os joelhos por andar de gatas. Depois procurou pelos cantos com a lanterna mas foi pena perdida, desistiu, se não era bruxedo parecia.

Pronto para a volta aos sábados de manhã ainda olhou aqui e ali, de brincadeira sacudiu o dedo ao "Lambareiro", se a moeda se perdesse pagava ele as favas.

Sentia-se aborrecido por ter falhado a rotina da moeda, quem sabe se não seria aquilo um prenúncio, mas já agora trocava as voltas ao destino, em vez de ir comprar o jornal começava pelo café, talvez encontrasse o Freitas.

Encontrou a Sara, pecado da juventude, duas vezes divorciada, sorriu-lhe e ia passar de largo mas ela acenou-lhe e lá teve de ir. De pé atrás, que o estafermo era mesmo boa na coisa mas um perigo e sem papas na língua, a gracejar que não se pesca ao anzol sem isca.

Há quase um ano estão de casa e pucarinho, foi ela que ao brincar com o gato encontrou a moeda e agora lhe diz que deixe essa treta de deitar a moeda ao ar, porque o que tem de ser tem muita força.