quinta-feira, dezembro 17

Ipameri

Ipameri, uns vinte quilómetros a sul de Brasília, hoje provavelmente tem arranha-céus, discotecas, poluição e os confortos e desconfortos que marcam a vida dos nossos dias. No início dos anos cinquenta, quando a capital brasileira existia apenas como vago plano na mente do futuro presidente Kubitschek, Ipameri era uma vilória sonolenta – a verdade obriga a usar o lugar-comum – ponto de passagem numa ruinosa estrada que por vezes servia de desvio caprichoso às carreiras que ligavam o Mato Grosso com o Rio e São Paulo. Carreiras que nesse tempo não conheciam o conforto do ar condicionado e percorriam 1000 km em cerca de uma semana, em vez das 18 horas actuais. Fora dos percalços, atrasos, tempestades e eixos quebrados, o que criava um ambiente de real solidariedade entre os passageiros, o motorista e o próprio veículo – ao fim da viagem a gente despedia-se deles com infinita saudade – havia o sentimento de aventura, o inesperado de certas etapas, o sorriso a que obrigavam os nomes de povoações que, por vezes, não eram mais que umas quantas casas em ruína ao longo da estrada poeirenta. Quem olhar o mapa encontrará por ali Orizona, Pires do Rio, Mossâmedes, uma Nerópolis que, tirante o topónimo, em nada se relaciona com o imperador romano.

Deus sabe ainda, mas eu quero esquecer, o que me levou por esses ermos a caminho de Porto Velho, na margem sul do majestoso rio Madeira, com intenção de depois alcançar Manoa na fronteira com a Bolívia, dois dias de barco a contracorrente. A última paragem da carreira fora Paracatu e, passada Cristalina, o motorista virou para sul, com alguma surpresa para os passageiros que julgavam poder continuar directamente para Goiânia. Vamos levar meu compadre direitinho a casa – explicou ele com um largo sorriso. O compadre tinha entrado em Belo Horizonte. Homem de cinquenta ou mais, vestido de linho branco, pasta debaixo do braço, sentara-se ao meu lado no último lugar livre, desejando-me cortêsmente boa-tarde. Quando lhe retornei a saudação o seu rosto tomou um ar tão caloroso que me pareceu necessário dizer qualquer coisa, mas ele com um gesto interrompeu-me:Não diga! Quero adivinhar! Português? Sim, sou. Eu sabia! Ouvi logo! Boa-tarde! A mesma palavra, mas com jeito tão diferente, outra pronúncia, outra música! Mas...Não havia mas nenhum! Eu não compreendia! Ele exultava por me ter encontrado! Portugal e os portugueses eram a sua paixão! Demóstenes Cristino, professor primário em Ipameri –disse, apertando afectuosamente a minha mão entre as suas. Foi depois, durante horas, uma torrente de louvores ao país e à gente que ele infelizmente não conhecia, se bem que um dia esperasse fazer «uma peregrinação a essa maravilhosa terra a que nos prendem laços atávicos». Eu, patrioticamente, fazia gestos de agradecimento. O grande Eça, o grande Camões, o extraordinário, inigualável Vieira que, por ter vivido no Brasil, era «duplamente nosso». De todos possuía ele a obra completa. A todos lia incessantemente, orgulhando-se de poder recitar de cor inúmeros trechos dos seus favoritos. E favoritos eram todos eles! Se eu dava licença queria-me mostrar... Pôs os óculos, abriu a pasta, rebuscou, tirou de lá um recorte de jornal amarelado pelo tempo. Um poema. «A Raça» – anunciou, desdobrando o papel. E apontando o nome do autor: – Demóstenes Cristino. Eu próprio, como já disse. Estendi a mão para pegar o papel, mas a intenção dele era que todos ouvissem e, levantando-se, explicou em voz alta que ia declamar a sua homenagem a Portugal. Pode ser ilusão agora, ao recontar, mas estou quase certo de que o motorista abrandou a marcha. Depois houve aplausos. Gritos de vivas. Abraçámo-nos. Quando lhe pedi para copiar os versos, ele entregou-me generosamente o recorte. Dava-mo. Só tinha mais um exemplar, disse, mas eram raras e excepcionais as ocasiões como esta. O motorista travou. Tínhamos chegado a Ipameri.

A RAÇA - Demóstenes Cristino

 O Brasileiro traz dentro de si

Um Português, um Negro e um Índio guarani.

O Luso deu-lhe a fibra audaz, arrojadiça

E a fidalguia própria dessa raça.

O bugre a natureza apática, a preguiça,

O amor à pesca, a inclinação à caça.

No excesso de carinhos e de zelos,

Reflete do africano o doce coração

E, às vezes, dos cabelos, aquela permanente ondulação.

Em harmonia vivem sempre os três;

Enquanto o negro bebe e o guarani batalha,

O pobre português trabalha.

Mas ai! Se no esplendor da graça,

Quebrando as ancas em lascivo jogo,

Uma morena passa:

O negro dança,

O bugre pega fogo,

E o português... avança!

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in Mazagran -Quetzal, 2012