segunda-feira, dezembro 28

27 e 28/12/1994

"Terça-feira, 27 de Dezembro - Têm de ser preenchidos os impressos da reforma e os da pensão da velhice. Só de ler as perguntas já se me desanda a cabeça e dalgumas palavras não faço ideia que significado possam ter. O que serão, por exemplo, 'as bases de contribuição da indemnização de disponibilidade'? Como saber se  'É ou foi transferida a sua importância livre de impostos? Ver pág. 5, número 10.' Transferida? Como? Porquê? Para quem? Com que consequências? Deus me valha!

Não fosse a minha mulher tomar a si o encargo, creio que dava em maluco. Ou, com piores consequências, faria como fiz com as declarações dos impostos nos primeiros anos em que aqui vivi: como as não compreendia, atirava-as simplesmente para o cesto dos papéis. Que me lembre, nesse tempo paguei de multas o equivalente a um rendimento.

Depois do medo de ontem, eu nos próximos tempos dispensaria as más notícias, mas o postal que ele me manda com as boas-festas começa com uma linha de mau agouro: 'Dentro em breve vão ter de me meter a faca'. Telefono preocupado. São dois tumores, um na próstata, outro nos intestinos, e ele ainda não sabe se benignos ou malignos. A mulher foi buscar o resultado das análises e não deve tardar.

Prometo telefonar mais tarde e entretanto dançam-me na cabeça os maus cenários a que estamos sujeitos na nossa idade. Uma hora depois, alívio. Os tumores são benignos. A operação ficará para o princípio do ano.

- Mas é só o adiamento da pena capital, não é? - comenta ele com um riso ácido.

Em Lisboa o prémio Fernando Pessoa no valor de sete mil contos foi atribuído ao poeta Herberto Hélder que, embora pobre, 'para não perder a sua independência' se negou a recebê-lo. Li, pensei no caso, e não chego a conclusão que me satisfaça, pois curiosa noção será preciso ter da fragilidade da própria independência, para acreditar que um prémio literário público a possa pôr em perigo.

Quarta-feira, 28 de Dezembro - Por vezes julgo-me imune, mas é a memória a passar-me rasteiras, porque na verdade a depressão está sempre à espreita. Basta um pensamento, uma palavra, uma olhadela quando, como hoje, mesmo ao meio-dia tudo é cinzento escuro e a chuva se eterniza. Então não há remédio nem ajuda que tire da alma as trevas em que ela se embrulha."

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In Tempo Contado, Quetzal, 2010.