terça-feira, novembro 3

Nos idos de Março

Miúdo precoce, e como por vezes já antes aqui dei conta, viciado na leitura do jornal, cedo tomei conhecimento do medo, não o dos fantasmas ou espíritos maus, pois nesses não acreditava, mas o dos italianos que então na Abissínia usavam aviões de caça, eu inocente julgando que era caça como a que meu avô fazia aos coelhos, descobrindo apavorado que era caça a gente indefesa que as fotografias mostravam a fugir e a morrer.

Veio depois o medo da Guerra Civil de Espanha, onde sofria gente que conhecia, e logo depois a Segunda Guerra Mundial que me apanhou entre a infância e a adolescência, entranhando em mim um medo diferente, temeroso e global, a anunciar que talvez o mundo acabasse em chamas sem me dar tempo de conhecer a vida. Sucederam-se não sei quantas guerras e guerrilhas, revoluções, conflitos, ameaças, mas já antes de em 1966 ter rido no cinema com The Russians are coming! The Russians are coming! o meu medo como que desaparecera vencido pelo ridículo.

Foi esse o tempo em que gente sensata tremia tanto aterrorizada com medo do Comunismo e da bomba atómica com que os russos iam reduzir a Europa a cinzas, que muitos furavam no quintal e na cave "abrigos anti-atómicos". Levaram-me a ver dois deles e fingi o melhor que pude, pois as pessoas seguiam à risca os conselhos das autoridades, tinham lá reservas de água, conservas, cobertores, sacos de dormir, velas, fósforos, lâmpadas de pilhas e um rádio portátil. Achar absurdo ou criticar estava fora de questão, menos ainda rir, o remédio era abanar a cabeça em descrença do ridículo e meter a viola no saco.

Ganhei assim o hábito de perder o medo, aprendi a não me assustar enquanto o tiroteio andasse por longe, tornando-se-me indiferente se a razão estava com Pedro ou com Paulo, insensível às análises e às ameaças, vivendo em paz e sossego. Até ao dia fatal de Março passado, quando me tomou um medo que continuo a sofrer e nem no pior pesadelo teria imaginado: o medo do meu semelhante, a certeza de que nem ele nem as autoridades me querem matar a tiro ou à faca, antes se sentem obrigados a proteger-me, mesmo que eu queira dispensar a protecção. Tudo para meu bem, saúde e segurança.

O direitos invioláveis da Constituição já eles os imprimiram em papel higiénico, e da máscara com que me obrigam a tapar a boca podem dizer que é para meu bem e segurança, mas é mordaça, simboliza a realidade de não me deixarem respirar e viver livre, de me escravizarem em nome de uma segurança mítica e da fantasia de que antes de infectar alguém o vírus se assegura que a pessoa não fez o teste.