quinta-feira, novembro 12

Faço quanto posso

Faço quanto posso para não entristecer mais nem desesperar, mas são poucas as ilusões que tenho quanto à minha capacidade de resistir, posta à prova em momentos inesperados.

Bateram à porta. Abrimos e logo a visita se afasta uns passos, mostrando cautela e que leva a sério a necessidade do afastamento. Sorrimos, acenamos desajeitados como crianças tímidas que hesitam nos movimentos. Veio de longe para nos ver, há mais de um ano que não nos encontrávamos, falamos do que agora se fala, dos perigos que corremos, dos entraves de cada dia, do desespero, da confusão e do desatino. Vêem-lhe as lágrimas quando recordámos o funeral do pai, falecido quando já tinham entrado todas as proibições, e o que havia de ser um momento de grande e sincera homenagem, onde se esperariam centenas de pessoas, tão estimada era a sua pessoa, acompanharam-no à cova a filha, os dois netos, o padre, os acólitos.

Continuamos a falar desse triste momento e assim escondemos o medo, o nosso desespero, a  raiva de nos sentirmos prisioneiros, obrigados a ficar quando tudo em nós pede liberdade, movimento, sujeitos a uma tirania que tem mais seguidores do que nenhuma outra jamais teve, algemados e contentes, sentindo-se eleitos porque a máscara anuncia ao mundo que são eles, a imensa maioria, que estão certos, estão do bom lado, para já têm o direito e até o dever de apontar o dedo aos desobedientes, vivem na ânsia de uma caça às bruxas para a salvação de mundo.

A amiga despediu-se com aquele aceno que ainda há pouco era de carinho, mas agora é todo de tristeza, deixando-nos sombrios, como se o amanhã só possa ser de malefício.