quinta-feira, novembro 12

Dois dias de Outubro 1994

 

"Quarta-feira, 12 de Outubro - À excepção da chuva na tarde de anteontem, todos os dias têm sido dum sol esplêndido.

As pessoas sentam-se na soleira das portas a ver quem passa - mas passam sempre as mesmas caras. À espera do que vai acontecer - mas o que acontece é tão pouco. Um tendeiro de longe a longe, a ambulância que vem buscar alguém para tratamento no hospital, os tractores dos madeireiros, um carro que chega, um carro que parte.

A acreditar nas notícias da televisão o país inteiro treme de expectativa. Amanhã é muito possível que o Nobel da literatura seja para António Lobo Antunes ou Jorge Amado, porque pelos jeitos é a vez da literatura portuguesa. Mas será possível? Jorge Amado? Lobo Antunes? Miguel Torga? Ou Saramago, como outros dizem?

Os comentadores tomam um ar conspiratório para recordar que Lobo Antunes partiu há poucos dias para a Suécia, acompanhado do seu editor. Indício certo, asseguram eles, de que vai haver grande novidade.

Está sentado à lareira, de costas para a porta e mal se dá conta da minha chegada. Conversamos, mas noto com estranheza que lhe custa concentrar a sua atenção e as respostas que me dá nem todas são pertinentes. É inesperado e chocante o vê-lo de repente absorto apoiar os dedos no nariz, meter o polegar na boca e ficar a chupá-lo como uma criança.

Além de chocante, terrível e doloroso, este prenúncio do que lhe poderá - nos poderá - acontecer.

Quinta-feira, 13 de Outubro - Nem Jorge Amado, nem Lobo Antunes, Saramago ou Torga. No noticiário da tv o apresentador disse que era uma decepção, "Uma grande decepção para o país inteiro." O Nobel foi para um japonês de que nunca ouvi falar: Kenzaburo Oë.

Um professor universitário que tinha sido chamado ao estúdio para comentar, afirmou peremptoria­mente que se um dia um português ganhar o Nobel da literatura, a sua obrigação é recusá-lo.

Fiquei suspenso para saber porquê e ele ia dizê-lo, mas o funcionário-apresentador cortou-lhe a palavra, pelo que nunca se conhecerão os valiosos e patrióticos argumentos com que se terá um dia de recusar a homenagem e o milhão de dólares dos suecos.

 

Fora o prestígio que aqui ainda se lhe atribui, o ser-se licenciado também concede na aldeia poderes inesperados.

Assim a Aida, ao ouvir-me sair de casa aparece à varanda e pede consulta médica. Na semana passada no hospital receitaram ao Benjamim uns comprimidos que não lhe fazem nada, até se sente pior e tosse mais, por isso como homem de estudos eu que lhe diga o que ele, com aquela tensão desmesurada, pode comer ou não.

A prudência mandaria que me esquivasse com desculpas, mas numa situação assim a prudência não tem cabimento. E receito: o Benjamim que evite o sal, o açúcar, a carne de porco, o vinho, o café. Que evite as aflições e os nervos. Que não se canse a trabalhar.

Trabalhar, já trabalha pouco, responde-me ela. E beber, só um copinho de vez em quando, coisa de nada. Infelizmente nenhuma força o vai obrigar a comer comida sem sal, a dispensar os doces, a carne de porco, o café e o leite bem adoçados.

Encolho os ombros, ela encolhe os ombros, sorrimos, dizemos que então será o que Deus quiser."

in Tempo Contado, Quetzal 2010.