segunda-feira, novembro 16

Cartas a Eça de Queirós (1)

Caro Mestre,

A intenção de lhe escrever é antiga, mas fui adiando até que, coisa de um mês atrás, me ocorreu que se a nossa existência na Terra é uma passagem os falecidos têm um destino, e esse pode bem ser um lugar em que gozem uma existência superior em tudo ao que conheceram, inclusivè no que respeita comunicações, tornando plausível que receba aí tudo o que por cá mencione o seu nome.

Também é grande a probabilidade que estas cartas nem cheguem aí, desapareçam na avalanche de estudos que o seu nome e obra ainda geram, mesmo assim arrisco, sempre servirão para o desabafo que com elas procuro, pois ninguém conheço a quem pedir que oiça as minhas decepções, e por experiência sei que pouco é preciso para que se mostrem aborrecidos ou reajam com uma má desculpa.

Também é verdade que por vezes me pergunto se não espero demasiado do meu semelhante, dos meus compatriotas, da terra em que nasci e dos que a têm governado desde que tomei consciência de que a cidadania me dava direitos e impunha deveres.

Pode ser ainda que desde esse tempo até agora, à força de demasiado ler e sonhar eu tenha deformado o sentido da realidade, iludindo-me que uma mudança assim ou assado deveria bastar para pôr nos eixos tudo o que descarrilou, mas ao mesmo tempo os anos já pesam o suficiente para que me dê conta da tolice de sonhar impossíveis, querer que a realidade se adapte aos meus desejos.

Tal como no seu tempo este nosso país está doente. Já não sofre da miséria medieval que eu próprio nos anos cinquenta ainda testemunhei, mas não consegue esconder que a sua pobreza  hoje tem sofrimentos e necessidades que a televisão a cores escamoteia e as boas promessas e os slogans de solidariedade dos senhores políticos fingem acalmar.

Já vivíamos em insegurança, com demasia de incertezas, mas esta tragédia que a todos ameaça e a grande miséria que se seguirá são a nossa versão da bíblica separação das águas, ficarão de um lado os que conseguiram fazer a travessia, e do outro aqueles a quem a miséria agravou o destino.

Como o senhor terá compreendido, eu não poderia ir incomodar um amigo com isto, tão-pouco bater à porta do vizinho para que me aturasse o desabafo, como também sei que abuso das facilidades da internet, esperançado que esta mensagem chegue ao destino.

Disso peço desculpa, e creia-me seu fiel admirador.

JRC