domingo, agosto 2

O medo de ter sorte

As pessoas que se conhecem bem aceitam as razões da sua maneira de ser, por isso vive o Guilherme em paz com a natureza rotineira que Deus lhe deu, fica doente se um motivo inesperado o obriga a mudar o horário ou os hábitos.

Avesso a prisões e obrigações cedo compreendeu que o celibato era a sua natureza, ainda nunca se arrependeu de viver sozinho e a reforma, que para tantos é um tempo  de tristeza e desespero, foi para ele uma libertação, pois nos últimos oito anos não terá havido meia dúzia de ocasiões em que as circunstâncias o levassem a falhar a disciplina a que se obriga.

Em pé às seis, gasta meia hora na higiene e na barba, quinze minutos no pequeno almoço, segue-se uma hora de passeio. De volta a casa durante hora e meia faz ginástica e halteres, a seguir cuida dos arrumos, e como se andasse de cronómetro na mão à uma menos um quarto entra no "Zé do Barraco" onde tem mesa reservada.

Chega a casa às duas, faz a sesta e acorda sem falha às três e meia, ocupa-se então nos afazeres domésticos ou vai ao supermercado. Como é pouco de cozinhados janta o que tiver à mão, vê o Jornal das Oito, depois um programa ou outro, às vezes procura um filme, à meia-noite em ponto está na cama.

Amigos de verdade nunca teve, com os conhecidos e os vizinhos pouco mais adianta que o bom-dia boa-tarde, ou fica por aquelas conversas em que a falar sem nada dizer se finge o convívio. Porém, e de nada adianta que lhe chamem Destino, Providência, Sorte, Deus, Fado ou Acaso, é por vezes nas vidas mais regradas que essa força de súbito intervém e as transtorna. Isso descobriu o Guilherme à espera de vez na bomba e a desconhecida lhe tocou no braço. Que desculpasse mas tinha de lho dizer: a sua aura estava a mudar do azul para o violeta, por certo era do signo Balança, na sua vida iam dar-se grandes mudanças, só não sabia se para bem ou para mal.

Sorriu a esconder a irritação que lhe causava a cinquentona de pequena estatura, nada de cigana, antes burguesa com um ar de autoridade, que sem mais recuou uns passos e de súbito pareceu desaparecer na loja.

Nunca foi de crendices, orgulha-se de ser alguém com os pés bem assentes no chão, mas desde o encontro anda preocupado, pois embora ainda nada tenha acontecido de mau, bom, ou surpreendente, verdade é que pode falar de um antes e um depois. Vive agora no temor de um acontecimento que ponha fim à calmaria da sua existência, e não o dirá em voz alta porque lhe chamariam maluco, mas até tem medo de ganhar o Euromilhões.