sexta-feira, agosto 21

As lágrimas vêm depois

 "As aulas vão recomeçar em Outubro e enquanto as férias duram passo o Verão sozinho na aldeia. A mulher fica em Bragança. Arranjo nascido sem palavras, um dos tantos hábitos que a meia-idade gera para mascarar as diferenças e as indiferenças que o tempo traz consigo. Porque se muitos casamentos resistem ao desastre e ao drama, raros sobrevivem à rotina. O nosso é hoje o corrente, um encadeado de rituais, o beijo na face, a cama de casal a manter a ficção, de parte a parte uma cortesia de estranhos.

Na presença dos filhos, dois rapazes, ainda conseguíamos manter as aparências, mas quando eles finalmente rumaram ao seu destino, as máscaras caíram por si só. Um alívio inconfessado. Resignação também.

Debaixo do mesmo tecto, mas cada um no seu canto. Ela com as amigas, a televisão, a missa, as obras de caridade. Eu com as aulas de História, os meus livros, o café, as fugidas à aldeia. Sem zangas, sem más palavras ou abalos. A vida - a minha, porque da dela pouco sei - transformada numa longa espera que, para dizer a verdade,  nem sempre me dói, como se as desilusões fossem anestesia.

Dos muitos sonhos realizei um: nunca tive necessidades, e da velhice só temo as doenças. O resto ficou para trás. Aventura amorosa vivi uma, breve, tolice da mocidade. Paixões não tive e em viagens nunca passei da Espanha.

Por carácter não sou dado a fazer balanços ou a repisar as ocasiões falhadas, mas durante as longas caminhadas pela serra acontece às vezes que os olhos se me param numa vista, e antes de me dar conta o espírito se perde a divagar. A idade então não conta, nem o passado, as peripécias da vida inteira esvaem-se da realidade e da memória. Nesses momentos tudo parece ao alcance da mão: refazer o meu mundo, recomeçar a vida, abrir outros horizontes. E mesmo sabendo que é fantasia, miragem, toque de loucura a durar o tempo dum relâmpago, sinto-me noutra pele e livre.

As lágrimas vêm depois, secretas. Porque se sei o que não tive, não sei o que perdi, nem do que precisaria para encher o vazio que se me criou no íntimo."

in A Amante Holandesa - Quetzal, 2010