quarta-feira, janeiro 29

Nótulas (75)


É fora de dúvida que a escrita tem um poder curativo. Pelo menos para mim tem. Sobram as  vezes que descarrego num personagem as minhas frustrações ou faço-o pagar por culpas que tenho, tão-pouco acho um problema atribuir-lhe os meus defeitos e perdoá-los depois no tom de pai magnânimo ou padre confessor. Atribuo-lhe o ridículo que em mim descubro, a minha timidez, os hábitos que não consigo descartar mas que passando a ser dele têm desculpa.
Com a escrita já me salvei de maus momentos e dela tenho recebido daquelas satisfações que não há à venda nem o dinheiro paga. Tem-me curado de horas de desalento e frustração, uso-a às vezes para dar bofetadas, mas também me tem feito sentir alegrias e privilégios que sem ela nem por sonhos estariam ao meu alcance.

Mas tudo são ocasiões e noutra altura, com outra disposição, saiu assim:

Nisto de escrita há quem tenha uma quinta, por vezes um latifúndio, mas a maioria, e aí me incluo, tem uma horta. Em geral, quando o digo, as pessoas não gostam. Uns acham pedantice, a outros parece vaidade disfarçada de modéstia, este e aquele aborrecem-se porque consideram que a escrita, aos seus olhos coisa elevada, nobre, não se deve banalizar em comparações que lhe embaciam o brilho.
Mas essa é a minha opinião e por ela me fico. A escrita é a minha horta. Com respeito pelo que faço e como o faço, semeio, lavro, rego, podo, corto uns galhos, queimo umas folhas. Sigo ainda o exemplo do hortelão quando ofereço o fruto ou o ponho à venda, o que só faço quando o julgo maduro.
Estive a pensar estas coisas durante a insónia da noite passada, e num acesso de febre comecei a fantasiar um mail que mandaria ao senhor Eça de Queirós a pedir-lhe conselho e opinião. É que ando azedo. Bem sei que no quintal de alguns nem a couve penca cresce, e que numa quinta ou latifúndio tem de ser grande a lixeira. Mas ó senhoras e senhores!