sábado, outubro 5

Contos da carocha


Não é preciso ser supersticioso para que às vezes nos assalte o sentimento de que se qualquer coisa não corre como esperávamos isso se deve à inveja, a praga que nos rogaram ou às forças do mau-olhado.
Alguns riem e encolhem os ombros, outros argumentam que alguém com dois dedos de cabeça não se deixa levar em contos da carocha, se acredita nos poderes do oculto desce ao nível dos clientes do professor Khalundé.
Assim será, mas esses não conhecem o Alípio Freitas, caso contrário talvez não se atrevessem a ser categóricos e prontos a rir do que desconhecem ou são incapazes de compreender.
Havia um ano que no nono andar do prédio do Alípio – o apartamento dele é no oitavo – morava um estrangeiro que pelo modo devia ser homem de posses, mas no resto era uma incógnita, nem nome parecia ter, pois junto da campainha estavam umas iniciais e na comissão de moradores só sabiam que a propriedade era de uma firma de Gibraltar.
Encontravam-se no ascensor, mas ao bom-dia boa-tarde o sujeito respondia com um aceno, uma imitação de sorriso, e a cortesia ficava por aí, dando a entender que dispensava intimidades.
Nessas circunstâncias o espanto não podia ser maior quando uma noite o Alípio ouviu que alguém batia à porta em vez de tocar a campainha, e ao abrir teve a surpresa de dar com o estrangeiro que, contra o seu natural, parecia desnorteado.
Acenou-lhe que entrasse e o homem, falando inglês, pediu desculpa do incómodo, dizendo   que agradecia que o acolhesse, porque se sentia mal e receava estar sozinho se tivesse um acesso.
- É epilepsia? - perguntou o Alípio.
- Antes fosse – respondeu o estranho, enquanto cambaleava a caminho do sofá, onde se deixou cair como se lhe faltassem as pernas, o rosto duma palidez sobrenatural, dando ideia que todo o sangue o abandonava, ao mesmo tempo que os olhos pareciam alargar-se numa expressão de terror.
O Alípio ia ligar para o 112, mas o homem, aos roncos e a espumar da boca, entrou numa grande agitação  a acenar que o não fizesse.
O que depois viu só o conta aos mais íntimos, não vão julgá-lo doido ou pior. O homem tinha-se estendido no sofá, as mãos cruzadas no peito, o corpo num tremor, ao mesmo tempo que parecia encolher ou ir-se afastando, até que de súbito desapareceu.
Para mistério chegava, mas o Alípio ouviu depois dizer que a firma de Gibraltar tinha o apartamento à venda, porque o funcionário a que o destinavam morrera num desastre e nunca o tinha habitado.
O Alípio jura que foi assim, e quem sou eu para duvidar?