sábado, outubro 12

Cada roca com seu fuso

De fato escuro, gravata preta, um modo trombudo, o Marcelino entra no café, estaca, volta à porta e com um piparote atira o cigarro para longe, vem sentar-se e bufa de alívio.
Conhecendo-lhe o mau génio fingimos de indiferentes, não se lhe vai dar o gosto de nos ouvir perguntar donde vem e a razão da vestimenta, pois tanto quanto sabemos não consta que lhe tenha falecido alguém ou tenha pendência no tribunal.
O silêncio durou pouco, quebrou-o ele com uma inesperada pergunta, a de querer saber se algum de nós já tinha ido a um funeral no estrangeiro. O Guedes e eu acenámos que sim, mas ele insistiu em querer detalhes, mostrou-se decepcionado ao ouvir que de modo geral nos países protestantes são cerimónias sóbrias, de pouco ou nenhum aparato e até certa frieza, dando por vezes a impressão de que, mau grado o ar contrito, a esperança dos presentes é que a coisa não demore. E como as sepulturas custam uma fortuna os enterros são raros, assim que o caixão começa a desaparecer devagarinho atrás do cortinado da máquina que o empurra para o crematório dão-se os últimos pêsames à família e cada um retorna à sua vida.
Lia-se-lhe na cara a decepção, mas em vez de explicar o porquê da sua curiosidade quis saber se nos lembrávamos do velhote irlandês que tinha vivido uns anos na vila e depois comprara uma quinta para os lados da Covilhã.
- O senhor Kavanagh.
- Esse mesmo. Alguns chamavam-lhe senhor Cabana e ele achava graça. Ora bem, deve ter sido porque lhe tratei dos carros que me mandaram o aviso de que tinha falecido, mas se calhar não compreendi bem, era em inglês. Esta manhã lá fui, e ao chegar caíram-se-me os queixos, porque não fazia ideia de que fosse assim. Pensava que o enterro saísse da casa dele ou da igreja, mas não havia enterro, o caixão já tinha ido para a Irlanda. Era num café, pelos jeitos um velório à moda deles e estariam ali trinta ou quarenta pessoas, até crianças, uma balbúrdia dos diabos. Nunca vi coisa assim. De vez em quando punham-se a cantar, e como havia bebida à farta e era de borla alguns já estavam entornados.
Não me despedi nem tinha que me despedir porque não conhecia ninguém, mas pelo caminho vim a pensar e acho que aquilo pode ser a maneira deles, mas não tem ponta por onde se lhe pegue. Nos nossos enterros nem todos terão pena do falecido ou da família, mas quem está ali mostra respeito e eu pensei que fosse assim em toda a parte. Mas pelos jeitos é como diz o ditado: cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.