sábado, junho 8

"Meu desespero ninguém vê"


Na aldeia já não estranham a mulher de meia idade que há tempos veio para ali e se senta nos degraus da porta de casa a cantarolar uma música. Sempre a mesma. De vez em quando acompanha-se ao violão. Sabem-lhe o nome, mas o que ouviram contar devem ser histórias.
A propósito do sofrimento alheio, duma ou doutra aflição, doença, drama, momento difícil, há sempre uma boa alma para repetir a sabedoria antiga de que com o tempo isso passa. É possível, mas quem o disser diante dela e for bom observador, nota que mal-grado uma aparente serenidade a face se lhe contrai, e durante segundos aperta os lábios como para evitar que se lhe escape a confissão de dores que raro partilha. E dores tem muitas, confessadas, inconfessáveis, algumas que só suporta porque as tornou ficção, casos que passariam o exame não fosse o ela às vezes descuidar-se no fingimento e escondendo o rosto ceder às lágrimas.
Para aquietar a consciência há quem diga que já não acontece, os tempos eram outros, mas ela nasceu, criou-se e conseguiu sobreviver naquela pobreza que alguns romanceiam, sem  ideia do que é a vida num casebre onde o pão falta e a lei é a da selva. Não esperem detalhes, que os não dará, salta no tempo para falar daquele que como muitos usou o seu corpo, mas seria o primeiro de quem recebeu carinho, teve filhos e depois atraiçoou, porque  o animal ferido que vivia dentro de si não suportava a fraqueza alheia.
Demorou a encontrar o que veio depois, mas então já não mandava a necessidade, sim a cabeça, com um rigor do cálculo que usado noutro campo lhe teria dado fama. Manhoso, falso, autoritário e cruel para os que dele dependiam, para ela um cordeiro, surpreendeu-a a facilidade com que o podia manipular, sempre em busca do limite, excitada pelo drama dos que se despenhavam, enquanto ela dançava ágil na borda do precipício. De como acabaram ambos na prisão raro fala, deixando também vago porque foi parar aos confins da Beira Alta. Compensa às vezes esse laconismo contando a cena que lhe ficou na tarde da despedida no aeroporto de Salvador: sentado numa mala, fitando os pés, indiferente ao bulício e aos que paravam a ouvi-lo, um velho negro cantava como se estivesse sozinho, com um sentimento de dar arrepios.
A melodia tocou-a tão fundo que desde aí fez dela a sua ave-maria, nem repara que une as mãos quando entoa baixinho: “Meu desespero ninguém vê. Sou diplomada em matéria de sofrer.” (*)
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(*) Diplomacia – samba de Óscar da Penha, o Batatinha (1924-1997).