quinta-feira, maio 2

Bilhetes (15)


A Lisboa tinha ido pela primeira aos dezassete anos, depois entre os dezoito e os vinte por lá me deixara ficar, gastando o tempo entre sonhos, boémia, tentativas de estudo que nunca levaria por diante, e a bizarra experiência do serviço militar, que em muitos aspectos me seria um trauma, engrossando a aversão à autoridade que me vem de nascença e continuo a manter.
Foi esse um tempo de aprendizagem, de descobertas e experiência, mas limitado ao ambiente popular, à vida da rua, dos cafés, um cheiro de boémia no Cais do Sodré, nas casas de fado de Alfama e do Bairro Alto onde ia tocar guitarra, e ao que podia sonhar nos cinemas.
Ver uma tarde Calouste Gulbenkian a sair do Hotel Aviz e dar dois passos para o seu Rolls-Royce, ou aperceber o que mostrava, casualmente aberta, a porta dos muitos palacetes que enchiam as avenidas, era o bastante para me dar conta que para lá do meu mundo da rua, de pobres, da tropa e da nada romântica boémia, havia “os ricos”, casta de que se ouvia falar, com um viver superior em ambientes requintados, desconhecendo dificuldades, perigos e contratempos.
Da alta-roda nacional sabia eu então apenas o que, com o desprendimento de quem olha para um palco, sobre ela lera em Camilo e Eça. Não me interessava a sua existência, cujo desaparecimento Marx prometia para breve, e o único ponto de contacto que por acaso tinha tido com essa espécie, resumia-se ao que na juventude me proporcionara uma família que então fazia parte da crème de la crème de Braga.
Dessa boa gente, destrambelhada em mais de um sentido, recordo a arrogância, os maneirismos, o modo paternal com que falavam ao caseiro, a curiosa capacidade de se dirigirem às criadas sem as olhar. Estas defendiam-se com a arte desenvolvida ao longo de gerações de pobreza, de se mostrarem exemplarmente submissas e, sabendo-me cúmplice, descarregando comigo segredos de alcova, mostras de fraca higiene e exemplos da sovinice.
Destes últimos há um que de vez em quando recordo, tão sintomático me continua a parecer.
Chegado Agosto, certa manhã ia toda uma caravana de parentes e dependentes acompanhar o casal e as filhas à estação, onde com pompa e circunstância se instalavam num compartimento reservado na primeira classe.
Tudo bem, e estariam salvas as aparências, não fosse a tagarelice do revisor passar de boca em boca e a cidade inteira ficar a saber que os quatro bilhetes de primeira eram só até Medina del Campo, onde a família mudava para a modesta segunda classe em que viajariam para Vichy onde iam a águas.
No regresso, um mês depois, repetiam a economia, mas em Braga viam-nos apear sobranceiros da mesma primeira classe. Um pormenor despertava a curiosidade de alguns, a trouxa tirada do furgão, tão descomunal no tamanho e no peso que dois carregadores a levavam com dificuldade. Ninguém perguntava, raros sabiam, a mim segredaram-no as raparigas, que tinham de lavar o monte de roupa suja de quatro pessoas durante todo um mês, que os senhores traziam de volta, porque a lavandaria do hotel em Vichy era uma roubalheira.