terça-feira, fevereiro 12

Sofrer da "veia"


Sofrer da “veia”


Todos conhecemos horas em que se dão coincidências de tal maneira absurdas, que mesmo o descrente empedernido sente abalada a sua certeza de que não há Céu nem Inferno, nem mistérios no Além.
Deve ter sido há cinco ou seis anos que recebei um envelope tarjado de preto com a notícia do passamento do Hirondino Manga. Num automatismo hipócrita mandei flores e desejei paz à sua alma, mas não fui ao enterro, creio mesmo que nesse momento comecei a safá-lo da memória. Isso porque além de fala-barato, o Manga era um picuinhas da pior espécie, um que tudo sabia, tudo recordava, logo azedo quando se lhe corrigia um disparate ou se discordava das suas ideias.

Bem sei que é injusto, certos detalhes não devem contar para a opinião que se faz de alguém, mas tinha maus dentes, usava um bigodinho à Hitler, e trazia as calças tão exageradamente vincadas que, sendo ele de uma extrema magreza, dava a ideia de andar sobre duas tábuas.

Julgava-o esquecido de todo, quando uma tarde na esplanada olho distraído as andorinhas que voam por ali, ocorre-me que em francês se lhes chama hirondelles, estou ainda a pensar sobre qual das duas palavras soa melhor, quando me tocam no braço e vejo diante de mim D. Luísa, a inefável viúva do Hirondino.
Ficamos à conversa, dois idosos a falar do que era, e de facto nunca foi, mas há conversas que são menos diálogo do que convenção, a tudo digo que sim, então tudo era melhor, muito melhor, abano tanto a cabeça a concordar que me dou conta que exagero.
- Salazar faz muita falta. Quem viveu nesse tempo é que sabe. Havia decência, moralidade, respeito, cada um conhecia o seu lugar.
Aceno de novo, franzo os lábios, mantenho o sério de circunstância.
- E o 25 de Abril terá feito algum bem, trouxe as pensões, mas este venha a nós, a roubalheira!
O meu gesto repete a concordância e ela salta para os malefícios da televisão, as porcarias, as poucas-vergonhas, fosse noutro tempo iam parar à cadeia.  Suspiramos ambos, olhamos em redor, tenho ideia de que como afabilidade já chega, tusso a preparar a despedida, mas ela fala ainda da solidão, das  noites  sem fim, de como ele era bom e carinhoso, levava-a ao cinema, iam de férias.
Sinto a atenção diminuir, sobressalto ao ouvi-la dizer que quase até ao fim teriam tido "vida sexual", não fosse o ele ter começado a sofrer da "veia".
Suponho problemas de varizes, da circulação, mas ela adivinha que me engano, e com um desembaraço que desdiz a sua repulsa da modernidade aponta os olhos à minha braguilha.