domingo, fevereiro 24

O tiro aos pratos


Talvez porque no Portugal do tempo em que vim ao mundo e me criei ela era uma miragem, coisa com que se sonha mas mal se imagina, e já tinha vinte anos quando finalmente a conheci, a liberdade de expressão é para mim um direito essencial, sagrado, indiscutível.
Naquelas horas em que resmungo sobre o muito que o 25 de Abril nos poderia ter trazido e não trouxe, e o pouco com que temos de nos contentar, sinto arrepios à ideia do que significaria voltarmos a um regime autoritário e a um tempo de censura, mas logo me conforto com a ideia de que não será de um dia para o outro que isso pode acontecer. E porque segundo consta ainda vai demorar a que a China refine e ponha à venda as suas técnicas de controlo dos cidadãos, para já vale o ditado de que enquanto o pau vai e vem folgam as costas.
Contudo, dado nunca haver bela sem senão, a euforia que me causa a liberdade de dizer o que penso e o que sinto, é temperada pelo modo como tantos dela se valem para porem o mundo ao corrente das suas, algumas vezes legítimas frustrações e raivas, mas num tom que irremediavelmente traz à memória a latrina e o esgoto. Entristecem-me e, por que não confessá-lo, também me assustam tantos comentários que leio na internet, nos jornais, não só pelo que revelam dos subterrâneos de algumas almas, mas  pela quase certeza que dão de que a sociedade em que julgamos viver é uma de aparências, e Deus nos guarde do momento em que essa mortificada gente possa traduzir em actos o que por enquanto são só pejorativos. E se bem que a certas horas me diga que devo acalmar o exagero, pois nunca será nem tanto ao mar, nem tanto à terra, no íntimo não consigo libertar-me de um sentimento que em simultâneo é de pena e de irritação. De pena, porque numa sociedade medianamente feliz, medianamente civilizada, os comentários poderão ser venenosos, agressivos e maléficos, mas só de longe a longe descem ao reles, e quando isso acontece é como se se ouvisse uma campainha a reprovar o desconchavo. Infelizmente, numa sociedade onde as razões de tristeza sobram, a esperança é fraca, o medo uma companhia de todas as horas, há poucas possibilidades de a breve termo se tornar exemplar nas boas maneiras.
Assim sendo e porque o remédio demora, talvez faça sentido que para canalizar noutra direcção as raivas e desesperos que nos apoquentam se estimule a prática do tiro aos pratos. Esse ruidoso mas pacífico desporto dá grande satisfação quando o tiro acerta e se vê o prato desfazer-se em estilhaços.