terça-feira, fevereiro 12

O fim das comezainas


O fim das comezainas
Desde que lhe nasceram os dentes sempre comeu com gosto e recorda saudoso as ocasiões em que o estar a família à mesa aos domingos, nos dias de festa ou de matança, mais do que ser refeição e convívio assemelhava-se aquilo a um ritual antigo, satisfazendo o corpo e deixando a alma num grande sossego.
Dava alegria a mesa cheia, cada qual saboreando ao seu modo, regalado de sentir o estômago satisfeito com o bom tempero, as gorduras e os doces. Havia indigestões, pois havia, e borracheiras, já que nem todos eram capazes de dominar a gula ou pôr travão aos copos.
Nos tempos que correm são cada vez menos os que apreciam esse passado com justo peso e medida, a maioria já se encontra infectada pelo medo e as muitas variedades do politicamente correcto, antes de levar o garfo à boca  toma a precaução de se informar se o que vai comer tem a quantidade precisa de minerais, vitaminas e os misteriosos elementos que, entre muitos outros, se encontram nas algas marinhas, no kamut, na quinoa e no sal do Himalaia.
Até há pouco vivia ele seguro de que, embora com o passar dos anos alguma coisa tivesse mudado nos seus hábitos alimentares, e as comezainas se tornassem excepção, isso só por alto afectaria o prazer de se sentar à mesa com parentes e amigos. Essa certeza, todavia, não demonstra apenas o seu atraso em relação à modernidade, é também uma das muito inocentes teimosias que se perdoam aos idosos, e facilitam que se lhes chame taradinhos, ou se suspeite que são estragos de Alzheimer.
Guerreavam antigamente as famílias por questões de heranças, futebol, diferenças políticas, fica ele de boca aberta com a paixão com que na sua se defendem as virtudes da aveia, da cevada e do farelo, se bem se lembra comida de cavalo, e o nojo que mostram cada vez que ele, distraído, teima em  recordar o aroma das costeletas de porco grelhadas ou o sabor das papas de sarrabulho.
De modo que, amigo de paz e não querendo ser desmancha-prazeres, continua a sentar-se com eles à mesa, ouve calado, debica isto e aquilo com o fastio dos que sofrem do estômago, se lhe fazem reparos lembra-lhes que com a idade se vai perdendo o apetite. Também aprendeu que se não entrar na conversa, nenhum deles atenta se come ou deixa de comer.
De facto desde há uns meses não estranham que ele, ora falta ao almoço, ora se diz sem apetite para jantar, pelo que talvez imaginem que anda metido nalguma aventura. O que os afligiria menos do que se soubessem das iguarias com que se regala fora de casa.