quinta-feira, fevereiro 21

"Judeuzinho? Fode-cabras?"


Estava em Paris há coisa de dois meses, quando o casal amigo que era o meu anjo custódio me convidou para passar com eles a Noite de Natal em casa de gente das suas relações, o que me traria a dupla vantagem de participar num “Réveillon” da alta roda parisiense e, quem sabe, travar aí relações que  poderiam ser úteis.
O acolhimento que me fizeram não podia ser mais cordial, eu esforçando-me para não mostrar o espanto que me causava um luxo que só conhecia dos filmes, não ficar de boca aberta para os decotes das madames e, na medida do possível, evitar de dar demasiado nas vistas ou, embora falasse um francês excelente, de participar em conversa que excedesse o escopo dos meus conhecimentos e acentuasse a modéstia da minha condição, da qual, no meio daqueles smokings, toilettes de Dior, Chanel, Fath, Balenciaga, dava prova suficiente o fatinho escuro que vestia, talhado em Caminha na alfaiataria do senhor Garrido.
Conversou-se, brindou-se com champanhe, eu respondendo como podia a um ou outro que, estranhando a inesperada e certamente peculiar presença de um  bisonho no meio de tanto chique, queria saber donde vinha, o que fazia, quem o  trouxera à festa, que laços o uniam à gente da casa.
Um ou outro, não uma ou outra, pois nenhuma das damas me dirigiu palavra ou deu mostra de notar o intruso, mas em todos era apenas o relâmpago de uma curiosidade desinteressada, alguns a voltarem as costas a meio da minha resposta. Sorriam, acenavam a alguém, e ali ficava eu especado, a boca cheia de dentes, ilha de solidão no meio da barafunda, preocupado se teria de esperar vez ou, como via fazer, aproximar-me do bufete, onde um cozinheiro de toque, três ou quatro raparigas e um mordomo de casaca, se curvavam em salamaleques, ao mesmo tempo que depunham nos pratos o que o conviva apontava.
Ao fim de um longo tempo de desconforto, a curiosidade e o apetite levaram a melhor, aproximei-me do festim e, julgando que imitava bem o que vira os outros fazer, apontei isto, aquilo, mais um bocadinho do outro e, s’il vous plaît,  uma fatia desse foie gras.
Fiz de conta que não reparava, mas o olhar do cozinheiro, as sobrancelhas do mordomo, o sorriso  da rapariga que me estendeu o prato foram o toque de campainha a alertar-me que de certeza tinha borrado a opa, talvez tanto pela demonstração de gula, como pelo disparatado conjunto de acepipes que a minha ignorância me levara a escolher.
Felizmente, nunca mais me vi em situação que se lhe comparasse, mas a ninguém desejo o mal-estar que decorre da mistura de ignorância, acanhamento, pequenez, e da certeza de que o ambiente nos encara de maneira igual à que na Índia os brâmanes “vêem” os intocáveis.
Seis décadas passaram, mas a recordação continua viva, menos pelo para mim então exótico ambiente e do que lá senti, do que pela desagradável peripécia em que me veria ser causa involuntária.
Vivette e Jean Barthelot, o casal amigo que me levara à festa, não somente pertenciam à alta burguesia parisiense, eram também gente que tomava a sério os seus ideais e princípios de conduta, o que a ele, engenheiro de profissão e herói da Resistência, tinha valido no fim da Segunda Guerra Mundial ser condecorado com a Legião de Honra.
Que a modos de iniciação no mundo ou de rito de passagem me tenham levado a tal sítio, a conhecer tal gente e aquele que sabiam seria para mim um ambiente estranho, não o fizeram por acaso, mas conscientemente, em sequência das muitas horas de conversa que tinham comigo quando visitavam Portugal e, se assim posso dizer, abrindo-me os olhos para o atraso, o regime político e as desigualdades sociais da minha pátria. Não que eu as ignorasse, mas porque apesar do excesso de leitura as examinava sem contexto social nem quadro histórico, numa simplicidade de eles e nós, pobre e ricos, e uma boa dose de aceitação do fatalismo.
Tinham sido ambos carinhosos, pacientes a limar a minha ignorância da História e da Democracia, e a que visse com outros olhos a Segunda Guerra Mundial,  explicando-me as consequências políticas e económicas do Plano Marshall, dos conflitos que se preparavam, das responsabilidade do cidadão.

Agora ali estava eu, ainda presa do meu embaraço no bufete, procurando descobrir onde me poderia descartar do prato, quando vem direito a mim um elegante de meia- idade, todo sorrisos, copo na mão, penduricalho na lapela, a passada desigual e instável de quem já bebeu a conta.
Pára, toca-me ligeiramente no peito com o dedo, sorri, cerra os olhos, recua um passo, rebenta numa gargalhada que leva alguns a voltar-se, parece sufocar com o próprio gozo e rouqueja divertido:
- T’es quoi, toi? Youpin? Bicot? (*)
O choque deve-me ter confundido durante mais tempo do que julgo, ou durante segundos perdi os sentidos, pois a recordação que guardo não pode ser fiel. É que em simultâneo oiço que o sujeito continua às gargalhadas, vejo que Jean o agarra e esbofeteia, Vivette aparece não sei donde, toma-me o braço e leva-me dali.
Nalguns rostos leio a surpresa com que me encaram e como se só nesse momento dessem por mim, outros mostram indiferença ou o fastio de quem presencia um incómodo.
……………………….
(*) “Tu és quê? Judeuzinho? Fode-cabras?”
Referente aos habitantes do Maghreb, Bicot era um pejorativo que eu desconhecia. Youpin tinha-o descoberto na obra de Jules Renard (1864-1910) um dos autores favoritos da minha adolescência. Escritor brilhante, mas de um antissemitismo que não fica atrás do de Céline (1894-1961).