terça-feira, fevereiro 12

Digam que é do feitio


Digam que é do feitio

Pode ser do feitio com que nasci, verdade é que sofro mal a autoridade, seja ela personificada pelo polícia que me barra o caminho e pede os documentos, o legislador que se intromete na minha vida, esses censores que agora se multiplicam como os percevejos, esperançados de poderem decretar o que como e bebo, a ortografia da minha escrita e as ideias que é bom ter para acompanhar a marcha harmoniosa do rebanho.
É também a custo que suporto os peritos que, sem prova dada de serem capazes de cuidar de si próprios, juram conhecer as mil e uma receitas para a cura das aflições alheias. Apontam o caminho seguro para a felicidade, sabem as fórmulas que aplanam as dificuldades da vida a dois, amaciam a convivência no lugar do trabalho. Para facilidade de consulta redigem manuais onde qualquer um pode encontrar o diagnóstico do seu achaque, e logo ao lado a cura adequada, seja ela na forma de infusões, técnicas respiratórias, ou movimentos de ginástica védica em que, alternadamente, se contrai e relaxa a zona entre o ânus e os genitais.
Digam que sim, que deve ser do meu feitio, ou azedume da idade porque já cá ando há muito, mas cada vez posso menos com os que apregoam técnicas e receitas para benefício do semelhante, venham elas de charlatões da  política ou dos catedráticos daquelas ciências que avaliam, contam e pesam os fenómenos sociais, e nos mostram a infalível via larga para o progresso, a riqueza e o bem-estar.
Ainda é só pesadelo que me assalta nas noites de insónia, mas temo bem que se  não nos acautelamos um dia destes começam a aparecer por aí incarnações dos inquisidores de má memória, ou daquele Ceausescu que mandava na Roménia.
Nos canais de Amesterdão já proíbem os grupos de turistas de olhar para as meninas que se exibem à janela, e a Polícia acha que soprar no balãozinho não basta, quer amostras da nossa saliva, tolerância zero para o álcool e as drogas.
Mas como? É você abstémio e sentou-se a conduzir depois de comer fruta madura, que no estômago se decompõe em álcool? Como vai provar que não bebeu? Doía-lhe a cabeça e tomou um inocente comprimido de paracetamol? Tem azar se for dos que contêm codeína, pois nas entranhas se decompõe em morfina. Gosta daquele pão muito popular e saboroso, polvilhado de sementes de papoila? Leva multa! Porque a saliva acusa a morfina e a heroína das sementes. Sabe que todas as limonadas contém quinina, um alcalóide? Deu-lhe a sede e bebeu? Multa!
Para onde vai este mundo? Que Ceausescus são estes?