terça-feira, fevereiro 12

As agendas da Mafalda



AS AGENDAS  DA MAFALDA

Ao fim da tarde de 31 de Dezembro de 1999, uma sexta-feira, Mafalda entrou na papelaria para comprar envelopes. Cedendo a um impulso, comprou também uma agenda, sem atender que era demasiado grande, e que teria de arranjar outra mais ajustada para trazer na bolsa.
No dia seguinte, sem intenção de continuar, somente porque lhe parecia  extraordinário assistir à viragem do século, abriu a agenda e escreveu um pequeno resumo da sua identidade e da sua vida: vinte e quatro anos, solteira, filha única, os pais vivos, veterinária, namorada do Paulo, casamento marcado para Setembro. Anotou também dois grandes sonhos que acalentava, mas ao reler o que tinha escrito assustou-se com a possibilidade de que alguém descobrisse o seu segredo e rasurou cuidadosamente as palavras.
De qualquer modo aquilo tornara-se hábito, e passou a comprar a mesma agenda todos os anos,registando sentimentos, namoros, encontros, alegrias e esperanças, sempre no estilo telegráfico a que obrigava o pouco espaço reservado para cada dia.
Na passada segunda-feira, à noite, sozinha em casa, Mafalda abriu o champanhe, e com um vago sentimento de fraternidade por aquelas multidões em festa ao redor do mundo, à última das badaladas brindou ao Ano Novo defronte da televisão.
Depois baixou o som e foi sentar-se à secretária onde, num ritual de cada noite de fim do ano, já tinha alinhado como numa estante as agora dezoito agendas, todas idênticas àquela primeira e da mesma cor vermelha, distinguindo-se apenas pela data na capa.
Seguindo o hábito que desde o divórcio tem mantido para assinalar o começo do ano, encheu uma segunda taça de champanhe, e de olhos cerrados passou os dedos sobre as agendas. Escolheu uma ao acaso, abriu-a para ver a data, curiosa do que teria anotado, estranhando que nessa altura a sua caligrafia  tivesse continuado regular, quase a mesma da adolescência:
‘Quinta-feira, 21 de Julho, 2011- Fazer das tripas um coração bem grande. Não esquecer que o amor é dádiva e, sendo assim, toda a dor causada, toda a decepção, todo o aborrecimento, venham eles quando vierem, como vierem, devem ser aceites com o sorriso que perdoa e compreende. A dádiva do amor está em que esse sorriso venha do coração, mesmo que seja de um feito das tripas.’
Fechou a agenda, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça, descrente de ter  escrito aquilo, que jamais tivesse pensado e sentido assim. Dádiva? Que dádiva? O que julgara amor tinha sido apenas a ratoeira em que a sua inocência a fizera cair.