terça-feira, fevereiro 12

A contagem das bênçãos



A  CONTAGEM DAS BÊNÇÃOS


A religião e a sabedoria mandam, ou pelo menos aconselham, que nas ocasiões de desalento se contem as bênçãos que nos calham, a começar pelas que  parecem triviais ou as que julgamos merecer pelo simples facto de nos terem posto neste mundo.
O que os sacerdotes e os filósofos aparentam achar irrelevante, é que mesmo para essa operação simples da contagem das bênçãos nunca ninguém teve tempo, ocupados como todos andamos a fintar os reveses do Destino, a malandragem dos semelhantes, os perigos que nos esperam ao atravessar a rua na passadeira, ao comermos camarões estragados, ou quando vamos ao Multibanco levantar vinte euros e nos pifam a carteira.

Embora tenha atingido há muito aquilo que o senhor Cardoso, homem que gosta de falar caro, chama “uma idade provecta”, a Mariazinha mantém em permanência na face um sorriso de bem-aventurança, a que de certeza vai gozar no Céu quando – de novo palavras do senhor Cardoso – “soar a sua hora derradeira”.
Além de cronista fiel da história da aldeia, desde o que aconteceu no tempo dos seus trisavós, ao desastre que a Leopoldina teve o mês passado em Celorico e onde quase ia morrendo, ela é também uma espécie de notário com excepcional memória, capaz de mencionar sem falha os nomes e os parentescos de várias gerações.
Todavia, aquilo em que verdadeiramente se distingue é o modo como responde a quem lhe pergunta o motivo do seu permanente sorriso e da boa disposição.
Se por acaso está sentada, martela o chão com a bengala à medida que vai nomeando as bênçãos de que goza, das quais considera primeira e maior a de nunca ter conhecido homem.
A segunda é a de uma saúde de ferro. Também se orgulha de ser mais moderna do que essas serigaitas que andam por aí a apregoar dietas e verduras, pois logo de pequenina enjoou a carne. Lembra-se que a comeu há mais de setenta anos, no baptizado do Felisberto, deram-lhe vómitos, nunca lhe voltou a tocar.
Terceira bênção: desde que se conhece só bebe água de nascente, que a mal cheirosa da torneira nem que lhe pagassem.
Descansa então a bengala, parece que vai anunciar a bênção seguinte, mas de repente entristece, só os de fora ignoram que não há mais, a conversa finda ali.
Dá-se o caso da Mariazinha ter conhecido homem, o Nicolau, o que lhe fez o mal. Varreu-o da memória e chamaria mentiroso ao que se atrevesse a recordar-lho. Só que ninguém se atreve. Por respeito, pela certeza de sermos menos abençoados do que ela, mas também porque na Mariazinha há um pouco de todos nós.