segunda-feira, julho 24

A cara que Deus nos negou

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É arriscado começar com uma anedota, não só porque haverá sempre alguém a dizer que é velha, como pela probabilidade de falhar o alvo. Se insisto é na esperança de encontrar alguma justificação para os sentimentos de que adiante tratarei.
Está, pois, um homem de meia idade uma manhã no quarto de banho, fazendo a barba, perdido em mil pensamentos, quando olha o espelho e, distraído, se surpreende a pensar: - Conheço este sujeito! Tenho a certeza que o conheço. Mas de onde será?
Acaba de barbear-se, lava a cara, aplica o creme, olha uma última vez o espelho, mas a pergunta continuará a obcecá-lo enquanto toma o pequeno-almoço, depois no metro, e só quando sai para a rua é que finalmente lhe ocorre: - Já sei! Conheço-o do barbeiro.

Por vezes custa a aceitar, mas sem dúvida  há alguma verdade na afirmação de que, passados os vinte anos, cada um é responsável pela cara que tem. No meu caso, com quase nove décadas a aturar-me a mim próprio e aos outros, incapaz de suficiente controlo sobre as emoções, escasso nas gargalhadas, com uns cantos da boca que tendem a pender, e sobrancelhas que por um nada se põem em arco, a minha cara nada deve à beleza. Se ao menos tivesse ângulos marcantes daria nas vistas, atraindo inveja, mas também esses componentes lhe faltam. Sobre tudo isso, a necessidade de uma operação feita há anos, além de ma ter deixado assimétrica, resultou em que se entorte quando sorrio.
Felizmente, o nível da minha vaidade sempre foi e continua dos mais baixos, e para o espelho só olho quando de longe a longe, também distraidamente, faço a barba.
Uns meses atrás, porém, ao dar com o meu retrato numa revista, surpreendi-me a resmungar, ‘Está um bocado parecido, mas não sou assim.’
Claro que sou, só que nesse e noutros casos o resultado tem menos a ver com a minha cara, do que com a dificuldade de tomar uma pose, e ainda, como já  apontei, porque me custa esconder o que sinto. Acontece que se o fotógrafo começa aos saltos, se agacha, ajoelha, se retorce, vira e revira a câmara ‘à procura do ângulo’, ora fotografa de alto, ora se deita no soalho, o momento fatalmente ocorre em que as sobrancelhas se me põem em arco, os cantos da boca num parêntesis invertido e as bochechas acentuam a assimetria.
Assim sendo, dado não sermos todos fáceis de retratar, e haver poucos  fotógrafos com o génio de Annie Leibovitz ou Yousuf Karsh,  teremos de nos ir contentando: uns com o modesto talento que Deus lhes deu, outros sem a bela cara que Deus nos negou.
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Publicado na DOMINGO CM.