segunda-feira, junho 12

Os pobres do Alçada

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Se há assunto que sobremodo me põe a olhar vesgo, é a ternura que os bem na vida  demonstram pelos pobrezinhos. Não tanto pela vontade ou intento que badalam de ajudar, serem caridosos e terem pena, antes pela ideia que me dão de que para eles, mau grado a aparência de gente de carne e osso, os pobres não pertencem exactamente ao mesmo género de humanidade, antes parecem fazer parte de um amontoado de seres incapazes, ou desinteressados de encontrar um lugar ao sol. Além do nojo que lhes causam com as suas chagas e andrajos, importunando quem passa.
Não vá o leitor agora, apressadamente, ter ideia de que eu sou um desses espíritos atormentados que desesperam com a ineficácia da luta de classes e sonham amanhãs impossíveis. Não sou. E por estranho que pareça, o facto de que as origens, o local do meu nascimento e as circunstâncias, me tenham desde o berço feito lidar com pobres, também não contribuiu para suavizar as minhas opiniões.
Há pobres de que lamento o destino e procuro ajudar como posso; há pobres que me incomodam; há-os de quem fujo, tão grande é a aversão que me causa a visível malandrice e o explorar das suas mazelas.
Sou de um tempo em que na nossa aldeia transmontana os mendigos apareciam com uma curiosa regularidade, a ponto que às vezes se estranhava andarem atrasados, e se perguntava ao vizinho se por acaso este ou aquele pedinte já tinha aparecido para receber a esmola.
Não exagero se disser que nas aldeias havia para com esses  pobres, não somente caridade, procurando confortar-lhes a miséria, mas se usava a esmola como uma forma de exorcismo, para eventualmente afastar a má sorte de que nos pudesse acontecer a mesma desgraça.
A respeito de pobres, encontrei uma vez, no fim dos anos 90, uma situação bem estranha durante uma reportagem que fiz em Las Hurdes, então uma das regiões mais pobres de Espanha. Em povoações inteiras as pessoas e os animais viviam juntos em casebres miseráveis, por vezes apenas um mal tapado buraco entre rochas, com um tecto de bocados de lousa.
De um velho e caridoso médico ouvi aí a estranha revelação de que o ser mendigo era, em Las Hurdes a profissão mais respeitada e proveitosa. Percorriam a Espanha inteira e, recebendo muitas esmolas, eram os favoritos das raparigas casadoiras.
Já agora, que falamos de pobreza, contou-me o saudoso António Alçada Baptista que, era ele rapaz, um dia o correio bateu à porta para entregar lista telefónica.
- Que se faz à velha? – perguntou ele à mãe.
- Dá-se a um pobre.
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Publicado na DOMINGO CM.