segunda-feira, junho 6

Questionário




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Questionário do Grupo de Leitores da Faculdade de Psicologia e Instituto de Educação da Universidade de Lisboa – 05 de Junho 2016 

Onde vai buscar inspiração para construir um personagem como o Meças: rude, pouco sociável, contraditório?

Creio que não falaria de inspiração, antes de observação. O personagem do Meças ganhou vida durante um período muito longo (neste caso cerca de treze anos), foi sendo inconscientemente composto de retalhos e pontas soltas de acontecimentos, casos, conversas, recordações.
Do modo como trabalho tudo isso permanece caótico, e durante um certo tempo não passa à escrita, no máximo tomo notas que nem sempre aproveito, porque sofro de um genuíno medo de escrever, o qual resulta da certeza da insatisfação que sentirei no final.
Se fosse possível passaria a vida a reescrever os meus livros, e é essa a razão que deixo passar muito tempo antes de voltar a abri-los.

De entre os romances que escreveu onde colocaria o Meças, em que lugar, quer dizer, se o Meças está entre os livros que gostou mais de escrever e de que gosta mais?

Desconheço o "gostar de escrever", porque para mim o escrever é trabalho com uma surpreendente percentagem de insatisfação e impotência. É muito difícil encontrar a palavra certa, o diálogo que tenha naturalidade, o bom ritmo, musicalidade, harmonia. O leitor raro se dá conta da verdade do que John Banville afirmou numa recente entrevista ao Observador: "Uma das coisas boas no romance é que é musical, é pictórico e linguístico. Às vezes uma frase dança, pinta uma imagem. Não gosto do romance enquanto forma, é desarrumado e aborrecido. Mas sei que é extraordinariamente rico. Não mudaria o sentido de uma frase para acertar o passo com a música, mas mudaria a música para que acertasse com a frase. A prosa tem que ser tão dura e fria como o mármore sendo, ao mesmo tempo, tão suave como a carne e tão musical quanto a voz."

Como reagiu à crítica de António Guerreiro no jornal Público a este seu livro? Pensa que ele foi justo e imparcial?

Primeiro franzindo o sobrolho, depois com estranheza, e por fim remetendo-o para a companhia dos críticos portugueses que a propósito do meu romance O Rebate(1971) gargalharam que eu nem sequer sabia conjugar verbos (o dito romance é considerado na Holanda uma obra prima, reeditado pela Quetzal em 2012 mereceu grandes louvores); o então célebre e muito respeitado João Gaspar Simões aconselhava-me no DN que deixasse a escrita e me dedicasse a outra coisa; na Colóquio-Letras idem.
Claro que não deixa de ser curioso o facto de, após mais de cinquenta anos de vida literária e algum nome no meio, só depois da publicação de treze livros em nove anos António Guerreiro me "descubra" e, em vez de dedicar a sua habitual coluna me "honre" com página e meia.
Que o aborreça a minha "híper-literatura", que ria do uso que faço de palavras que ele diz já não se usarem (por certo nos salões que frequenta), que ajoelhe nos altares de Lacan,  Derrida, Barthes, Bourdieu e semelhantes, só lhe posso desejar bom proveito.
Imparcial não foi, e lá terá as suas razões. Inteligente ainda menos. Sério também não. 

Em entrevista recente ao Expresso afirmou que "limpa" muito os textos, reduzindo-os ao essencial. Nunca deu por si a pensar, a posteriori, que possa ter exagerado na limpeza?

É possível que sim, que exagere na "limpeza", mas é a minha reacção aos livros "gordos", escritos com as excessivas descrições e os detalhes que eram necessários nos séc. XIX, mas supérfluos depois da descoberta do cinema e do desenvolvimento das artes visuais. O bom leitor hoje dispensa, suponho, que lhe façam a papa e lhe mostrem como engoli-la.

Há "Meças" na Holanda ou estamos a falar de um espécimen com tal particularidade de atributos que só habita Portugal e/ou Trás-os-Montes?

Evidentemente que há tipos violentos por toda a parte, mas no meu entender o Meças é muito português, muito transmontano, produto específico do lugar onde nasceu, e das circunstâncias e  maneira como foi criado. É provável que também se pudesse situar na Calábria ou na Sicília .

Poderia falar-nos um pouco mais acerca da "Carla dos Copos"?

É uma figura trágica, e como ela conheço muitas, que sacrificadas à ambição paterna optam por um curso de que ao fim se dão conta de que é um beco sem saída. A província está cheia desses escritórios de advogadas sem clientela, raparigas que se encontram em simultâneo em várias prisões: a da família, a do meio, a perspectiva de um futuro sombrio, a incapacidade de mudar.

Que sugestão faria de autores e/ou obras de escritores atuais portugueses, para lermos e debatermos no grupo de leitura?

Pela originalidade, a boa escrita, e o tema: As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral, Prémio Saramago 2015.

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