terça-feira, maio 19

A Alice costuma avisar



O texto que segue é ficção e data de Janeiro de 2009. Lembrei-me dele quando dias atrás me vi a tomar parte numa conversa em que, embora diferentes, o teor e os subentendidos estranhamente mo trouxeram à lembrança.


"Entro e vou sentar-me junto dos outros em volta da lareira. Quatro mulheres, dois homens. A conversa interessa-os de tal modo que mal me encaram, e ao “Boas-tardes” respondem com um breve aceno.
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- Esse era o Gaspar.
- Ai não era o Júlio?
- Não. Esse era o Gaspar, o que casou com a Celeste. A mais nova.
- Mas então o Júlio..
- O Júlio é o que tinha a loja de panos.
- O que foi para Angola?
- Exactamente.
- O irmão já lá estava.
- O irmão já lá estava, e continua a estar, mas dá-se mal com o clima.
- A minha sobrinha é o contrário. Só gosta de calor. E praia. Agora anda a pensar...
- Mas então o Gaspar não foi o que esteve mal dos pulmões, e depois houve um acidente qualquer....
- Não. O Gaspar teve um cancro. Dizem que se calhar...
- E a Celeste?
- Também lá está. Mas se ele falecer volta logo, porque se dá muito mal com a pretalhada.
- A minha sobrinha também não gosta nada deles. Nem os garotos. A mais novita anda sempre a pedir... Coitadinha! É muito engraçada, aquela menina!... Ajoelha-se diante da mãe, de mãos postas, Ó mamã! Vamos embora! Ó mamã! Vamos embora!... Riem-se muito com ela!
- Quanto valerá o terreno que os Macedos têm ao pé da bomba de gasolina?
- Pelo que fica atrás da farmácia deram quinze mil e quinhentos contos. Agora...
- Quanto é isso em euros? Chega aí um papel.
- Ontem na Urgência encontrei o Sebastião com a mãe. Parece que não escapa. Querem levá-la para o Porto, mas ouvi dizer...
- Também com aquela idade!
- Seiscentos e quarenta mil e...
- Não pode ser! Dá cá o papel.
- A Alice já devia ter chegado. Será por causa do irmão?
- Ela costuma avisar. Mas hoje ainda não telefonou.
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Amodorrei. Depois, perdido nos meus pensamentos e hipnotizado pelas chamas, devo ter cabeceado. Levantei-me como quem procura qualquer coisa e saí sem ninguém dar conta."