sábado, março 21

Recordar é sorrir

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Tinham-me convidado, insistindo que não faltasse, e lá fui. Ao “Jantar dos Escritores da Esquerda”, organizado “Célula dos Escritores Comunistas” no Mercado do Povo, em Belém. Dezoito de Junho de mil novecentos e setenta e sete.
Da esquerda ou não, entre amigos, menos amigos, olás, conhecidos, desconhecidos, ilustres e menos ilustres, estavam ali tutti quanti que dum ou doutro modo tinham a ver com as Letras. Recordo Mário Dionísio, Manuel Ferreira, Jorge Reis, Isabel da Nóbrega, Eduardo Prado Coelho, José Gomes Ferreira, Baptista-Bastos, Álvaro Guerra, José Cardoso Pires...
Tirei más fotografias, ouvi isto e aquilo, com um sorriso releio algumas das anotações que fiz desse longínquo jantar.

O que o preocupava era saber em que momento iriam cantar a ‘Internacional’, porque teria de sair antes.
- Tenho de sair antes, pá, senão estou lixado! Por causa do jornal!
Inquieto, os olhos a rebolar, num sobressalto quando o Rui Nunes, agarrando-o pelo braço lhe perguntou:
- Onde é que se mija?

- "O P... quis fazer cá uma Associação dos Grandes Resistentes Antifascistas. Só desistiu pelo perigo que lhe apontei de que os mal intencionados fariam logo gracinhas com as várias associações de ‘Grandes Feridos, Grandes Mutilados, grandes isto e grandes aquilo, como há em França. Por isso é que a coisa não avançou. Uma pena!"

Num bom discurso Mário Dionísio falava de Alves Redol. Sentado ao meu lado, X., que só bebia água, levantou-se e, sem razão que se adivinhasse, apontando-me, interrompeu o orador com um grito:
- É nossa obrigação! Devemos! Temos de auxiliar os filhos dos nossos emigrantes! Esses valorosos obreiros que lá fora lutam para que...
Mas a conclusão não vinha e Mário Dionísio retomou o discurso.
Quase no fim, quando já se tinha bebido o bastante para esquecer o que nos juntara ali:
– As nossas Forças Armadas, com aqueles alamares, aqueles debruns, os galões dourados, e fitas, e palmas, medalhas...
- E uns naviozitos que se não são traineiras pouco lhes falta!
- Espera aí! Ao dizer Forças Armadas eu estava a pensar no Exército, só no Exército!
- Errado! A Marinha também é Forças Armadas, muito bem assim como os paraquedistas, os comandos, a GNR...
- A GNR?
- Pois claro! E a Guarda Fiscal, o Otelo, e o outro... aquele gordo!...
- O Ernesto Lourenço?
- Não! O Ernesto é o outro! Eu digo aquele, um que...
- O Vasco?
- Exactamente.
- Mas em termos de, digamos, neste contexto, em termos de revolução...
- Ah! Você não leu Marx, não leu o Engels!...
- Não digo que li ou deixei de ler! Nem isso aqui importa. Aliás, você interrompe-me sem saber o que vai seguir!
- Diga lá.
- Pois bem, em termos de revolução...
Mas nesse momento chegou C., muito moreno, perguntaram-lhe se vinha do Algarve.
- Do Algarve? Venho do Alentejo!
Fazendo com os dedos um V e gritando um alegre "No pasarán!", virou-nos as costas.
- Este filho da puta tem uma sorte! Vocês já viram a sueca que o gajo arranjou?