terça-feira, março 11

À espera de amanhãs


"Que roube, que faça mal, apanham-me, dão-me um destino. Mas assim, quieto, parado, à espera do milagre, o pai a sustentar-me, não conto. Arrumado como um objecto sem uso. Do menino que prometia ficou isto: o corpo mole, a cabeça pesada de desejos que não são para satisfazer, um nojo vago do que está à volta e é vil.
 Pego num livro e perco-me nele, duas horas doutra coisa, doutra vida, até que ao passar defronte da cómoda o espelho me devolve uma fealdade crua e febril. Tivesse ao menos nascido bonitão, musculoso… Mas quem me quer? A Lota, quase anã, enfezadinha, que se dá atrás do quintal, um resto de história para um dia contar. Mulher que me queira o sorriso, as mãos, o resto, mulher de verdade, não nasceu.
Dias de inverno, dias de chuva, ao anoitecer estou na cama, a esperar um amanhã que traga novidades."
* * *
In "Montedor".