quinta-feira, junho 27

Linhagens


No seu lugar calávamo-nos, mas a raiva que o consome é forte, o desespero tão grande, que o deixamos desabafar, mudos e quietos como se fôssemos público num teatro, e ele no palco representasse uma tragédia.
Sofreu, perdeu, sente-se traído, mas o seu ódio não vai para o desgoverno, a corrupção, os podres da justiça, ou a falta de moral. O rancor que o afoga causam-no "esses pelintras que nada tinham, esses badamecos que nem a cara lavavam e agora comem de faca e garfo!"
Contorce o rosto numa gargalhada, aponta com o dedo a massa invisível. "Labregos, é que eles são, sempre foram, hão-de ficar! E os filhos com estudos, estudos? Julgam que saíram da lama? Nunca! É lá que pertencem."
Barafusta, grita, agita-se, descontrolado, irracional, o medo que temos é de vê-lo numa síncope. Ouvimo-lo sem replicar, na esperança de que aos poucos vá caindo em si, se aperceba da inutilidade da agitação. Depois assim acontece, mas fica no ar um acanhamento, o desconforto de nos sabermos cada um com os seus pensamentos, involuntária e secretamente  recordando a "linhagem" do nosso amigo.
É isso que a ele e muitos salva: a falta de memória e a recusa de se verem ao espelho.